Retomada Kaingang e Xokleng

Indígenas Kaingang e Xoklen retomam território ancestral no Morro Santana 

Noite desta terça-feira, 18 de outubro, dezenas de indígenas dos povos Kaingang e Xokleng, junto a apoiadores, fizeram uma ação de retomada em uma área de espera da imobiliação.

Há décadas, como comunidades Kaingang do Morro Santana, gravadas por Kujà ( mais espiritual ) Gah Té, que denuncia como constantes ameças de destruição de seu território sagrado, na forma de novos condomínios, velhas pedreiras, incêndios e ampação de avenidas. Para os Kaingang, ou Morro Santana, é satrado por conta de seus antepassados que foram encontrados em todas as regiões, das casas subterrenas que constroem territórios e umbigos de seus arquivos e netos que também são inseridos no solo. Como araucárias, especialmente sagrada para uma cultura Kaingang, foram derrubadas e, em seu lugar, foram introduzidas espécies exóticas, como pinus e eucalipto.

A área retomada estava sem função social há mais de 40 anos. Nos anos 1970, a chácara integrava o complexo de pedreiras do Morro Santana. Com a desativação da pedreira e a falência da mineradora de José Asmuz, em 1981, o imóvel foi hipotecado ao Banco Maisonnave e hoje é propriedade da Maisonnave Companhia de Participações, que planeja construir um grande condomínio. O projeto de loteamento, já aprovado, prevê a construção de 11 torres de 714 apartamentos e 865 vagas de estacionamentos, o que traria grandes impactos ambientais, uma vez que, já tendo sido protegido pela legislação ambiental, o local concentra grande extensão de área verde preservada, além de cursos de água que passam por dentro do terreno. A área fazia parte de uma Área de Preservação Permanente (APP), porém teve ajuste de limites e passou a ser considerada “área de ocupação intensiva”, autorizando a construção no local.

O empreendimento foi aprovado mesmo com argumentação contrária de vários conselheiros, que em reuniões junto ao Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA) afirmaram ser área de importância ecológica, histórica, com potencial arqueológico comprovado, área de preservação permanente, de expressiva cobertura vegetal, de recursos hídricos, de potencial cultural, etc. Mas essa aprovação fez parte de uma manobra para contornar a decisão do Conselho: tendo sido barrado pelos conselheiros da região competente, o projeto foi enviado para o CMDUA de outra região, onde foi aprovado.

De acordo com os pareceres 006/12 e 095/12 da CAUGE, elaborados por arqueólogo responsável, a área possui características que conferem um considerável potencial arqueológico, referente à ocupação tanto histórica como pré-colonial. Por isso, julga-se necessário a realização de um diagnóstico arqueológico a partir de prospecções no subsolo, além de medidas de proteção dos bens de interesse cultural, por ocasião da etapa de licenciamento ambiental. Um projeto assim deve ser submetido ao IPHAN para análise e obtenção de autorização de pesquisa, contemplando: “trabalho de campo, pesquisa histórica, iconográfica, etnahistórica, atividades laboratoriais com o material arqueológico eventualmente recuperado e ações educativas, prevendo a paralisação temporária da obra e o salvamento arqueológico em caso de identificação de remanescentes de interesse arqueológico.” Até o momento de publicação deste texto, essa medida não foi cumprida.

Entre os anos 1960 e 1970, o empreendimento minerário-extrativista resultou na destruição da paisagem, e a gigantesca ferida aberta no morro ficou conhecida como a “Pedreira do Asmuz”, hoje sendo vista a quilômetros de distância de várias partes da cidade. Em 2017, a mineradora Depósito Guaporense e seu proprietário José Asmuz (já falecido), junto ao município de Porto Alegre, foram condenados (SENTENÇA 70009570490 2004/CÍVEL) ao pagamento de indenização pelos danos materiais e ambientais em Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público, sendo obrigados a apresentar um projeto de recuperação integral da área.

Desde 2021, a área da Pedreira passou a ser alvo de ameaça de privatização, quando o vereador Jessé Sangali defendeu, em TV aberta, a implantação de empreendimentos turístiscos no local. A comunidade prontamente reagiu à ameaça organizando um “Abraço ao Morro”. Você pode ler mais sobre esse ato aqui.

A empresa que atualmente detém a propriedade da área, Maisonnave Companhia de Participações, integrava o “Grupo Maisonnave”, que foi liquidado extra-judicialmente após crimes contra o sistema financeiro nacional. A família teria acumulado dívidas com o BNDES e diversos órgãos do Estado na casa dos trilhões de Cruzeiros,e por isso está com dezenas de imóveis penhorados pela justiça. A falência do banco Maisonnave junto ao Comind e Banco Auxiliar, em 1985, causou um rombo de 6.836.000.000.000 (6 trilhões e 836 bilhões) de Cruzeiros, dinheiro que na época era suficiente para construir 390.851 casas populares, equivalendo a cerca de 5% de todo orçamento da União. Parece que, mais uma vez, o dinheiro dos pobres foi desviado para socorrer os ricos. Nesse contexto, foi decretada a liquidação extrajudicial do Grupo Maisonnave. Em 1997, o saldo da dívida dos bancos era equivalente a R$ 400,00 milhões. Porém, até a data de publicação deste texto, não encontramos registro que seu proprietário tenha quitado a dívida, não havendo também nenhum tipo de penalização.

Resgatando as matas, os campos e as águas

O Morro Santana é um território rico em biodiversidade, localizado entre os biomas pampa e mata atlântica, contando com uma grande variedade de plantas e animais. Além disso, é o ponto mais alto da capital gaúcha (311 metros) e dele partem importantes nascentes do Arroio Dilúvio.

Por milhares de anos, a região foi um território indígena, até a chegada dos primeiros colonizadores e a fundação da “Sesmaria de Sant’anna”. Segundo relatos historiográficos, como os presentes no livro “Do Morro Santana, a cidade de Porto Alegre” (Vera Lúcia Maciel Barroso e Maria Osmari, 2004), a região do Morro Santana foi a primeira a ser colonizada, no local onde hoje se encontram os limites da capital gaúcha com a cidade de Viamão. O sesmeiro Jerônimo de Ornellas teria se valido de conhecimentos geográficos dos povos indígenas para penetrar a região e estabelecer a primeira sesmaria em local adequado.

Um exemplo da forte influência dos conhecimentos indígenas sobre a geografia de Porto Alegre é a imensidão de topônimos indígenas que nomeiam os bairros, ruas, rios, riachos e arroios da região metropolitana, como Ipanema, Nonoai, Itapuã, Iguatemi, Ubirici, Jarí, dentre tantos outros. O próprio bairro onde se encontra a retomada, Ypu, significa, em tupi-guarani, olho ou fonte d’água (Ypú: Y + bur = água + surgir). Além disso, uma das nascentes do Arroio Dilúvio, cujo topônimo original é Jacareí (jacaré pequeno), também um nome indígena, passa por dentro do território retomado. O Arroio Dilúvio vem sendo destruído pela má gestão ambiental, que se acumula ao longo das décadas, e ameaça matar o Guaíba (outro nome indígena).

Mais do que nunca, Porto Alegre está sendo vendida para a especulação imobiliária, isto é, para os ricaços e fundos de “investimento”. Ameaçam a preservação das águas e matas com o Pontal do Estaleiro (que já depredou um sítio arqueológico na orla do Guaíba para construir uma loja de departamentos gigante). Ameaçam a existência dos Mbyá Guarani, na Ponta do Arado com um enorme condomínio de luxo. Ameaçam o Quilombo Lemos com as torres do Beira Rio, em conluio com o Asilo Padre Cacique. Ameaçam tantas e tantas vidas, tantos territórios que resistem ao projeto de morte dos ricos.

Dentro desse contexto, as famílias Kaingang que hoje vivem desaldeadas no entorno do Morro Santana, na altura do bairro Passo Dornelles (referência ao “Passo do Ornelas”) sofrem com uma reintegração de posse em outra área onde as construtoras querem avançar com seus condomínios. O MP prometeu tentar providenciar o reassentamento em área do território, mas, passado o prazo estipulado, as famílias estão sem resposta. Por isso, decidiram agir e retomar seu território originário.

Em 2010, famílias Kaingang já haviam tentado retomar parte de seu território em uma área que estava sendo desmatada para construção de um Parque Tecnológico da UFRGS. A ação foi reprimida pela polícia, mas uma decisão judicial garantiu a permissão do acesso às áreas do morro pelos indígenas para coleta de cipós, ervas e plantas medicinais e matéria-prima para seu artesanato (FIOCRUZ, 2010).

A retomada do território ancestral pelos povos originários Kaingang e Xokleng é a retomada da terra pelos seus verdadeiros donos. O Morro Santana está presente nos relatos dos mais velhos (kofás), que narram como seus antepassados prezavam esse morro, não só pela riqueza de água, alimentos, ervas medicinais, etc., mas também por ser o ponto mais alto da região, o que, de um ponto de vista estratégico, propiciava uma visão panorâmica, contribuindo para a defesa contra potenciais inimigos, dentre os quais os colonizadores. Muitos umbigos Kaingang estão enterrados na mata do Morro Santana. Em todo o território que esse povo viveu e circulou, os topos de morros são especialmente importantes, eram os locais mais sagrados do território, e estão presentes desde o mito de criação dos seres humanos e dos primeiros Kaingang.

Fonte: Teia dos Povos.