Se as pessoas não estivessem sido criadas a volta de uma indústria pornô tão cruel com o corpo da mulher, nós não teríamos a ideia preconcebida e preconceituosa do que é uma vagina “estranha”, e não estaríamos sempre a procura do ideal estético de vagina. Temos sofrido uma lavagem cerebral no sentido de pensar que que as mulheres são pequenos seres delicados, flores com suas vulvas de delicadas e lindas pétalas, simetricamente perfeitas. Não! Muitas mulheres agora estão querendo fazer um procedimento chamado de cirurgia íntima ou ninfoplastia, que é a diminuição dos pequenos lábios vaginais, cirurgia puramente estética em busca de uma vagina que a sociedade considera esteticamente agradável. As atrizes pornôs dos filmes se submetem a procedimentos para deixar os órgãos sexuais mais “limpos” e atraentes, depilações a laser, clareamento anal, ninfoplastia, silicone, entre outros… O que as pessoas consideram uma vagina “estranha” é na verdade uma vagina normal, uma vagina linda, uma vagina nunca é igual a outra, somos diferentes, cada vagina é diferente, assim como um seio costuma ser diferente do outro, os lábios vaginais também não são iguais. Essas assimetrias são supernormais, não interferem no seu prazer ou na sua saúde. Aprenda a amar-se,nós somos mulheres reais, não precisamos mudar nada no nosso corpo para agradar ninguém. Somos musas de nós mesmas.
Fonte: Vênus Garden.
Andei pensando em transmasculinidades e korpas gordes.
Esses dias me veio a imagem de uma tabela, uma lista a ser preenchida com vários fatores. Um deles pode ser a estética. Ou a estética binária que nos ensinaram.
O que atravessou minha korpa trans e gorde, é que passei tempos buscando roupas na sessão “masculina” porque o que tinha no setor “feminino” não suportava meu tamanho gordo.
Com isso, entrava em um sistema compensatório e binário para “não parecer um homem”, devido ao fato de ter nascido com uma vagina e ter sido identificado como mulher ao nascer.
O que me passa é que, meu corpo gordo, que já era errado só por ser, deveria pelo menos “acertar” e anular as características do meu suposto gênero oposto, afinal é exigido do comportamento humano que as características binárias de homem/mulher sejam bem definidas (e que ouvimos incessantemente o discurso de “homem é homem, mulher é mulher”.)
E o corpo gordo, o que é?
Nem é. Porque socialmente não se quer que seja. Nem que exista.
Eu vejo no olho aberto e na respiração que muda quando alguém se incomoda quando uma corporalidade gorda compartilha de um mesmo espaço. Eu vejo nas caras a expressão de “você nem devia estar aqui, linde”. Mas estou. Estamos.
E para além dos olhares de inconformidade, uma pessoa transgênero/travesti recebe a violência do controle. É excluída e assassinada diariamente para não comprometer a moral da família. Pelo bem das crianças. Pelo seu deus. Pelo capital que gira. Pelos bons costumes. Pelo binarismo. Pela natureza, afinal “homem é homem, mulher é mulher”.
Quando, desde cedo, me diziam “tu está parecendo um homem”, por conta de alguma expressão minha, como fala ou gestos, algo nisso me agradava porque me sentia contemplade. Aos poucos adormeci essa contemplação quando vi que parecer um homem era algo que alguém que nasceu com vagina não deveria parecer. E sendo gorde, esse cuidado deveria ser redobrado, caso contrário achariam que eu fosse sapatão. Não lésbica, sapatão mesmo. Butch. E que isso era errado.
Aprendi que um corpo gordo que se identifica como mulher não teria espaço para explorar sua feminilidade, a não ser que fosse na figura de mãe e cuidadora, já que essa feminilidade seria única e exclusivamente elaborada para atrair o bom e velho macho. E que ninguém gosta de gorde. E que pelo menos eu deveria ser inteligente & engraçade.
Quando o $istema percebeu que se podia lucrar em cima de korpas gordes e elaborou o “plus size”, parecia que eu deveria estar extremamente grato e feliz, já que assim se pode inserir nos ambientes elitistas e binários. Poderia ser uma pessoa gorda ajeitadinha & pertencente.
E eu só conseguia sentir as mãos no pescoço me dizendo qual deveria ser meu papel. E qual coisas eu poderia ou não usar.
Ao me perceber como uma pessoa trans, as normas estéticas e de apresentação corporal se desmontaram e se destruíram, porque finalmente me permiti ser. Respirei de alívio ao perceber que essa lógica binária não tem sentido mesmo.
Que as coisas são coisas, não são coisas-com-gênero. Mas isso é só uma percepção interna, socialmente não é bem assim.
E aí entra a destruição da masculinidade-tal-qual-como-se-espera-de-um-homem-trans. Porque percebi que as coisas que são lidas com gênero poderiam ser usadas como ferramentas para romper com a lógica da estética binária. Que não necessariamente deveria excluir “expressões de feminilidade” (coloco aspas porque expressões não tem gênero, elas são associadas socialmente a um gênero) para me afirmar enquanto uma pessoa trans que não se identifica como mulher. Que eu podia ser uma pessoa trans monstre, não pertencendo as regras das estéticas pré-estabelecidas.
Não pertencer à norma é de um atrevimento delicioso. Existem dias que eu não tô nem aí. Em outros sinto um tesão e só saio pra rua se for pra incomodar o olhar alheio.
Porque como uma erva daninha nós vamos tomando espaço.
Porque estamos. Somos les monstres gordes y trans com sangue no olho e fúria nos nervos. Porque seguimos resistindo. Desviando. Desviados. Transviados. E gordes.
By Eros Nukäos
Como é a disforia para pessoas não binárias
Tradução: Netuno Moonstone
Naomi Lauren, mulher trans não binária, cheia de ideias, cristã, compassiva, demisexual, geek.
“Disforia” é um termo médico invulgar que significa angústia.
Angústia crônica é uma coisa ruim para qualquer um, seja cisgênero, transgênero binário ou não binário.
Há um mito de que pessoas não binárias não possuem disforia de gênero, ou que sua disforia de gênero é menos intensa porque elas são andróginas ou senão de gêneros intermediários.
É um mito bem ruim, porque isso basicamente dá às pessoas permissão para fazer de conta que nossas identidades de gênero não são reais, para cometer misgender* conosco, ignorar nossos pronomes, depreciar nossas experiências, nos negar tratamento médico, nos discriminar em ambientes de trabalho, e esperar que nos encaixemos nas expectativas binárias de gênero.
Há 4 tipos de disforia de gênero, até onde posso me lembrar. Pessoas não binárias talvez sofram de algumas combinações desses itens, tão prontamente quanto pessoas trans binárias sofrem:
1. Disforia de corpo – Para mim é mais sobre meu cabelo e cintura. Quando isso estava pior, eu costumava usar um depilador no meu peito… oh, sim, isso DÓI!!! Usar cera era muito caro, e não dava pra fazer com frequência o suficiente para trazer o alívio que eu buscava.
Sendo uma mulher trans não binária, o crescimento mamário que tive graças ao estrogênio HRT me causou períodos sério de disforia corporal… mas eu aprendi a me tranquilizar quanto a isso. Eu precisava de estrogênio HRT por outras razões.
Para algumas pessoas não binárias, certos procedimentos como depilação por eletrólise, mastectomia, ou outras cirurgias, podem ser criticamente importantes.
2. Disforia social – Minha identidade de gênero é marginalmente feminina, uma “tomboy” ou “demigirl”. Eu não sou nem um pouco feminina ou refinada, mas eu ainda PRECISO ser aceita como uma mulher. Essa NECESSIDADE de aceitação, como mulher, influenciou muito a minha transição para o gênero feminino. Transição de gênero significa perder alguns familiares, minha subcultura, a maioria dos meus amigos, e tem sido um grande revés na minha carreira. Mesmo assim precisei fazer isso.
Aceitação de nomes e pronomes é um símbolo poderoso de aceitação de sua identidade de gênero.
Teria sido mais fácil para mim encontrar aceitação como uma pessoa andrógina?
Não, porque as identidades e pronomes de pessoas andróginas não binárias são frequentemente nem entendidas, nem respeitadas!
3. Disforia relacionada a expressões de gênero restritas – Uma vez havia uma pessoa não binária me pedindo ajuda sobre o que vestir para um casamento. Su melhor amigo estava se casando, e elu estava ansioso para ir, ansiose para não desapontar su amigo, e ainda mais ansiose e com medo do que era esperado que elu usasse, e como essas roupas formais tão específicas para determinado gênero seriam gatilho para elu. Esse é um dilema comum entre pessoas não binárias. Eu sou MUITO agradecida por não ter sido convidada para casamentos formais em um longo tempo. Encontrar roupas formais relativamente neutras, que realmente servem, e ainda assim me fazem parecer mulher, é um grande desafio. Usar um vestido ou um terno seria provavelmente um gatilho sério para mim.
4. Disforia relacionado a níveis hormonais – Sim, isso existe. Eu ouvi falar sobre isso vezes demais para ignorar. Eu experienciei isso. Para pessoas trans binárias, você talvez passe por isso como uma emoção da transição, ou um efeito placebo. Para pessoas não binárias começando testosterona ou estrogênio HRT, ambos emoção e placebo são com frequência MUITO reduzidos, por causa de sentimentos incertos e confusos.
O efeito químico direto de testosterona ou estrogênio HRT no cérebro, de qualquer forma, é muito notável, especialmente se você está um pouco relutante para adquirir um novo conjunto de características sexuais secundárias.
Eu tomo tanto estrogênio quanto testosterona, para replicar níveis hormonais típicos femininos. Se o nível de testosterona sobe demais, me causa ataques de pânico, crises de choro e depressão bem profunda. Se o nível de testosterona descer demais, me causa uma perda drástica de energia e a sensação de que tudo é difícil demais. Estrogênio demais deixa minhas emoções fora de controle; estrogênio de menos e eu perco minha resiliência emocional e audácia para encarar situações difíceis.
Suporte hormonal para transgêneros e não binários pode ser MUITO importante.
Ainda que eu esteja em transição feminina, eu também sou não binária.
Disforia de gênero é uma coisa horrível de se experienciar. Pode doer de forma excruciante para algumas pessoas. Pode ser debilitante para algumas pessoas. Também pode ser bem menos intenso para outras, apenas um desconforto crônico, como um par de sapatos que não serve direito.
Algumas pessoas sofrendo de disforia de gênero intensa são trans binárias; algumas delas são não binárias.
Disforia é horrível para todas elas.
A intensidade da disforia de gênero não tem nada a ver com qual identidade de gênero você tem. A intensidade tem a ver com:
- Intensidade da identidade de gênero. A identidade de uma pessoa andrógina pode ser muito intensa, enquanto outra pode ser mais facilmente encaixável nos padrões de gênero.
- Se a sua mistura dos quatro tipos de disforia de gênero te causa problemas familiares, de trabalho ou subcultura.
- Experiências de rejeição, particularmente familiar.
- Experiências de discriminação e preconceito.
- Experiências de apagamento, pessoas dizendo que seu gênero não existe, ou se recusando a escolher o nome e pronomes que você escolheu.
*misgender = maldenominar/malchamar/ uma pessoa tratando ela com o gênero e pronomes errados intencionalmente.
Fonte: Mídia Qüeer
Quem defende a criança queer? (Paul B. Preciado)
Os católicos, os judeus e muçulmanos integralistas, os copeístas* desinibidos, os psicanalistas edipianos, os socialistas naturalistas à la Jospin, os esquerdistas heteronormativos e o rebanho crescente dos modernos reacionários se juntaram neste domingo para fazer do direito das crianças a ter pai e mãe o argumento central que justifica a limitação dos direitos dos homossexuais. Foi o dia deles de sair, um gigantesco “sair do armário” dos heterócratas. Eles defendem uma ideologia naturalista e religiosa que conhecemos muito bem. A sua hegemonia heterosexual sempre esteve baseada no direito de oprimir as minorias sexuais e de gênero. Eles têm o hábito de levantar o facão. Mas o que é problemático é que forçam as crianças a carregar esse facão patriarcal.
A criança que Frigide Barjot diz que protege não existe. Os defensores da infância e da família apelam à família política que eles mesmos constroem, e a uma criança que se considera de antemão heterossexual e submetida à norma de gênero. Uma criança que privam de qualquer forma de resistência, de qualquer possibilidade de usar seu corpo livre e coletivamente, usar seus órgãos e seus fluidos sexuais. Essa infância que eles afirmam proteger exige o terror, a opressão e a morte.
Frigide Barjot, a musa deles, aproveita que é impossível para uma criança se rebelar politicamente contra o discurso dos adultos: a criança é sempre um corpo ao qual não se reconhece o direito de governar. Permitam-me inventar, retrospectivamente, uma cena de enunciação, de dar um direito de réplica em nome da criança governada que eu fui, de defender outra “forma de governo” das crianças que não são como as outras.
Em algum momento fui a criança que Frigide Barjot se orgulha de proteger. E me revolto hoje em nome das crianças que esses discursos falaciosos esperam preservar. Quem defende o direito das crianças diferentes? Os direitos do menino que adora se vestir de rosa? Da menina que sonha em se casar com a sua melhor amiga? Os direitos da criança queer, bicha, sapatão, transexual ou transgênero? Quem defende o direito da criança a mudar de gênero, se for da vontade dela? Os direitos das crianças à livre autodeterminação de gênero e de sexualidade? Quem defende os direitos da criança a crescer num mundo sem violência sexual ou de gênero?
O discurso onipresente de Frigide Barjot e dos protetores dos “direitos da criança a ter um pai e uma mãe” me faz lembrar a linguagem do catolicismo nacional da minha infância. Nasci na Espanha franquista, onde cresci com uma família heterossexual católica de direita. Uma família exemplar, para quem os copeístas poderiam erigir uma estátua como emblema da virtude moral. Tive um pai, e uma mãe, que cumpriram escrupulosamente a sua função de garantir domesticamente a ordem heterossexual.
No discurso francês atual contra o matrimônio e a Procriação com Acompanhamento Médico (PMA) / Inseminação Artificial para todos, reconheço as idéias e os argumentos do meu pai. Na intimidade do lar, ele usava um silogismo que evocava a natureza e a lei moral com a intenção de justificar a exclusão, a violência e inclusive o assassinato dos homossexuais, travestis e transexuais. Começava com “um homem deve ser um homem e uma mulher, uma mulher, como Deus quis”, continuava com “o que é natural é a união entre um homem e uma mulher, é por isso que os homossexuais são estéreis”, até a conclusão, implacável, “se o meu filho é homossexual prefiro matar ele”. E esse filho, era eu.
A criança a ser protegida da Frigide Barjot é o resultado de um dispositivo pedagógico terrível, o lugar onde se projetam todos os fantasmas, a justificativa que permite que o adulto naturalize a norma. A biopolítica** é vivípara e pedófila. A reprodução nacional depende disso. A criança é um artefato biopolítico que garante a normalização do adulto. A polícia de gênero vigia o berço dos seres que estão por nascer, para transformá-los em crianças heterosexuais. A norma ronda os corpos meigos. Se você não é heterossexual, é a morte o que te espera. A polícia de gênero exige qualidades diferentes do menino e da menina. Dá forma aos corpos com o objetivo de desenhar órgãos sexuais complementares. Prepara a reprodução da norma, da escola até o Congresso, transformando isso numa questão comercial. A criança que a Frigide Barjot deseja proteger é a criatura de uma máquina despótica: um copeísta diminuído que faz campanha para a morte em nome da proteção da vida.
Lembro do dia em que, na minha escola de freiras, Irmãs Reconstituidoras do Sagrado Coração de Jesus, a madre Pilar nos pediu para desenhar a nossa futura família. Eu tinha sete anos. Desenhei eu casada com a minha melhor amiga, Marta, três crianças e vários cachorros e gatas. Eu tinha imaginado uma utopia sexual, na qual existia casamento para todos, adoção, PMA… Alguns dias depois a escola enviou uma carta à minha casa, aconselhando os meus pais a me levarem a um psiquiatra, para consertar o mais rápido possível o problema de identificação sexual. Depois dessa visita, vieram várias represálias. O desprezo e a rejeição do meu pai, a vergonha e a culpa da minha mãe. Na escola foi espalhado o rumor de que eu era lésbica. Uma manifestação de copeístas e frigide-barjotianos era organizada todos os dias na frente da minha sala de aula. “Sai daí sapatão, diziam, você vai ser violada para aprender a beijar como Deus ensinou.” Eu tinha um pai e uma mãe, mas eles foram incapazes de me proteger da depressão, da exclusão, da violência.
O que o meu pai e minha mãe protegiam não eram os meus direitos de criança, mas as normas sexuais e de gênero que dolorosamente eles mesmos tinham internalizado, através de um sistema educativo e social que castigava todas as formas de dissidência com a ameaça, a intimidação, o castigo, e a morte. Eu tinha um pai e uma mãe, mas nenhum dos dois pôde proteger o meu direito à livre autodeterminação de gênero e de sexualidade.
Eu fugi desse pai e dessa mãe que Frigide Barjot exige para mim, a minha sobrevivência dependia disso. Assim, ainda que tivesse um pai e uma mãe, a ideologia da diferença sexual e a heterossexualidade normativa roubaram eles de mim. O meu pai foi reduzido ao papel de representante repressivo da lei de gênero. A minha mãe foi privada de tudo o que podia ir além da sua função de útero, de reprodutora da norma sexual. A ideologia de Frigide Barjot (que está ligada com o franquismo católico nacional daquela época) impediu àquela criança que eu era ter um pai e uma mãe que poderiam me amar e cuidar de mim.
Levou muito tempo, conflitos e cicatrizes superar essa violência. Quando o governo socialista do Zapatero propôs, em 2005, a lei do casamento homossexual na Espanha, meus pais, sempre católicos praticantes de direita, se manifestaram a favor dessa lei. Eles votaram a favor do partido socialista pela primeira vez na vida deles. Eles não se manifestaram só a favor da defesa dos meus direitos, mas também para reivindicar o próprio direito deles de serem pai e mãe de uma criança não-heterossexual. Votaram pelo direito à paternidade de todas as crianças, independentemente do seu gênero, sexo ou orientação sexual. A minha mãe me contou que teve que convencer o meu pai, mais reacionário. Ela me disse “nós também, nós também temos o direito de ser os seus pais”.
Os manifestantes do dia 13 de janeiro em Paris não defenderam o direito das crianças. Eles defendem o poder de educar os filhos dentro da norma sexual e de gênero, como se fossem supostamente heterossexuais. Eles desfilam para conservar o direito de discriminar, castigar e corrigir qualquer forma de dissidência ou desvio, mas também para lembrar aos pais dos filhos não-heterossexuais que o seu dever é ter vergonha deles, rejeitá-los e corregi-los. Nós defendemos o direito das crianças a não serem educadas exclusivamente como força de trabalho e de reprodução. Defendemos o direito das crianças e adolescentes a não serem considerados futuros produtores de esperma e futuros úteros. Defendemos o direito das crianças e dos adolescentes a serem subjetividades políticas que não se reduzem à identidade de gênero, sexo ou raça.
* Seguidor de Jean-François Copé, político francês.
** Conceito de Michel Foucault que designa um poder exercido sobre o corpo e as populações.
Beatriz Preciado é filósofa, diretora do Programa de Estudos Independentes do Museu d’Art Contemporani de Barcelona (MACBA). Autora dos livros El manifiesto contra-sexual (2002), Testo Yonqui (2008) e Pornotopía. Arquitectura y sexualidad en “Playboy” durante la Guerra Fría (2010).
“Qui défend l’enfant queer?” foi originalmente publicado em francês em: http://www.liberation.fr/societe/2013/01/14/qui-defend-l-enfant-queer_873947
Em espanhol: http://artilleriainmanente.blogspot.mx/2013/01/beatriz-preciado-quien-defiende-al-nino.html
Tradução: Fernanda Nogueira
Outra voz
Estou me acostumando a minha nova voz. A administração de testosterona faz com que as cordas vocais cresçam e engrossem, produzindo um timbre mais grave. Esta voz surge como uma máscara de ar que vem de dentro. Sinto uma vibração que se propaga em minha garganta como se fosse uma gravação que sai através da minha boca, transformando-a num megafone do estranho. Eu não me reconheço. Mas, o que quer dizer “eu” nesta frase? “Pode o subalterno falar?”: a pergunta que Gayatri C. Spivak fazia pensando nas complexas condições de enunciação dos povos colonizados cobra agora um sentido distinto. E se o subalterno fosse também uma possibilidade sempre já contida em nosso próprio processo de subjetivação? Como deixar que nossos subalterno trans fale? E com quê voz? E se perder a própria voz, como índice onto-teológico da soberania do sujeito, fosse a primeira condição para deixar falar o subalterno?
Os outros, está claro, tampouco reconhecem esta voz que a testosterona induz. O telefone deixou de ser um fiel emissário para se converter num traidor. Ligo para a minha mãe, e ela contesta: “Quem está aí? Quem é?” A ruptura do reconhecimento torna agora explícita uma distância que sempre existiu. Eu falava e eles não reconheciam. A necessidade de verificação põe à prova a filiação. Sou realmente seu filho? Fui alguma vez realmente seu filho? Às vezes me penduro na linha porque temo não ser capaz de explicar o que ocorre. Outras, digo: “sou eu”, e imediatamente depois acrescento “estou bem”, como para evitar que a dúvida ou o alerta se anteponham à aceitação.
Uma voz que até então não era a minha busca refúgio no meu corpo e eu lhe dou. Viajo agora constantemente, estou uma semana em Istambul, outra em Kiev, ou em Barcelona, Atenas, Berlim, Kassel, Frankfurt, Helsinki, Stuttgart…a viagem traduz o processo de mutação, como se a deriva exterior tentasse relatar o nomadismo interno. Nunca acordo duas vezes na mesma cama…nem no mesmo corpo. Por todas as partes se ouve o rumor da batalha entre a permanência e a mudança, entre a identidade e a diferença, entre a fronteira e a ressaca, entre os que ficam e os que estão obrigados a partir, entre a morte e o desejo.
Esta voz aparentemente masculina recodifica o meu corpo e o libera de verificação anatômica. A violência epistêmica do binarismo sexual e de gênero reduz a radical heterogeneidade dessa voz à masculinidade. A voz é o amo da verdade. Lembro, então, a possível raiz comum das palavras latinas “testigo” e “testículo”. Somente aquele que tem testículos pode falar frente à lei. Do mesmo modo que a pílula induziu uma separação técnica entre heterossexualidade e reprodução, o Ciclopentilpropionato, a testosterona que agora me injeto intramuscularmente, torna independente a produção hormonal dos testículos. Ou, dizendo de outra forma: “meus” testículos – se por ele entendemos o órgão produtor de testosterona- são inorgânicos, externos, coletivos e dependem em parte, da indústria farmacêutica, e em parte, das instituições legais e sanitárias que dão acesso à molécula. “Meus” testículos são uma pequena garrafa com 250 mg de testosterona que viaja na minha mochila. Não se trata de que “meus” testículos estejam fora do meu corpo, senão mais bem que “meu” corpo está mais além da “minha” pele, num lugar que não pode ser pensado simplesmente como meu. O corpo não é propriedade, senão relação. A identidade ( sexual, de gênero, nacional, ou racial…) não é essência, senão relação.
Meus testículos são um órgão político que inventamos coletivamente, e que nos permite produzir de forma intencional uma variedade de masculinidade social: um conjunto de modalidades de encarnação que por convenção cultural reconhecemos como masculinas. Ao chegar no meu sangue, essa testosterona sintética estimula a hipófise anterior e o hipotálamo e os ovários deixam de produzir óvulos. Não há, porém, produção de esperma, porque meu corpo não possui células de Sertoli, nem tubos seminíferos. Imagino que provavelmente não esteja tão longe o dia no qual estes possam ser desenhados por uma impressora 3D a partir do meu próprio DNA. Mas, no momento, dentro da nossa episteme capitalo-petro-linguística, minha identidade trans terá que se fazer com bricolagem[1] muito mais low-tech. Se tivéssemos dedicado tanta investigação para comunicar com as árvores como nos dedicamos à extração e ao uso do petróleo, talvez pudéssemos iluminar uma cidade através da fotossíntese, ou pudéssemos sentir a seiva vegetal correndo em nossas veias, mas nossa civilização ocidental se especializou no capital e na dominação, na taxonomia e na identificação, não na cooperação e na mutação. Noutra episteme, minha nova voz seria a voz da baleia, ou o som do trovão, aqui é simplesmente uma voz masculina.
Cada manhã, o tom da primeira palavra pronunciada é um enigma. A voz que fala através do meu corpo não se recorda de si mesma. Tampouco o rosto mutante pode servir como um lugar estável para que a voz busque um território de identificação. Essa voz que muda não se trata de simplesmente uma, nem simplesmente masculina. Talvez seja isso o que fica do eu ocidental e de sua absurda pretensão de autonomia individual: ser o lugar no qual se desfaz e refaz a voz, o local, teria dito Derrida, desde o qual se opera a desconstrução do fono-logo-falo-centrismo. Despossuído da voz como verdade do sujeito, e sabendo que os testículos são sempre um aparato social prostético, me sinto um cômico caso de estudo derridiano, e rio de mim mesmo. E ao rir de mim, noto que a voz salta na minha garganta.
Texto de Paul B. Preciado. Tradução de Inaê Diana Lieksa (transfeminismo.com). Texto original disponível em Parole de Queer.
Nota da tradutora
- Um termo mais apropriado talvez fosse DIY , sigla de Do It youserlf, em inglês, que significa ‘’faça você mesmo”.
∇ Não Seja Gay … (zine)
∇ Indígenas Homosexuales … (livro)
∇ O pünk quebrou ø armário (intrevista com Mamá)
∇ Queer punk Queer funk (zine)
∇ “¿Será que los punk son putos?” … (texto)
∇ Queer – explicado para anarquistas, antiautoriatarios … (zine)
∇ Um papo com gays anarquistas de cuba (entrevista)
∇ El Teje – O primeiro periódico travesti latino-americano (clique na revista):
*imagem de Solânge To Aberta grupo de Qüeer Fünk.