O voto secreto?

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A POLÍTICA NÃO ME INTERESSA (1)

(Por: Maria Lacerda de Moura*)

“Obedecer é a escola de quem quer mandar.”

O voto? — Nem secreto, nem masculino, nem feminino. O voto secreto? — A confissão pública da covardia, a confissão pública da incapacidade de ostentar a espinha dorsal em linha reta, a confissão pública de servilismo e da fidelidade aviltante de uns, do domínio das mediocracias legalmente organizadas. Democracia? — Ferrero a definiu: “este animal cujo ventre é imenso e a cabeça insignificante”. O voto não é necessidade natural da espécie humana: é uma das armas do vampirismo social. Se tivéssemos os olhos abertos, chegaríamos a compreender que o rebanho humano vive a balar a sua inconsciência, aplaudindo a miséria parasitária que inventou e representa a tournée da teatralidade dos governos, da política, da força armada, da burocracia e afilhados — para complicar a vida cegando aos incautos, a fim de explorar todo o gênero em proveito de interesses mascarados nos ídolos do patriotismo, das bandeiras, da defesa sagrada dos nacionalismos e das fronteiras, da honra e da dignidade dos povos. Depois, a rotina, a tradição, a escola, o patriotismo cultivado, carinhosamente, para que a carneirada louve, em uníssono, o cutelo bem afiado dos senhores. A religião, a família encarregam-se do que falta para desfibrar o indivíduo. O voto, a legislação interesseira e mesquinha dos pais da Pátria, Parlamentos, Senados, Consulados, Ditaduras, Impérios, Reinos, Repúblicas, Exércitos, Embaixadas, Liga das Nações, Paz Armada, Alexandre, Césares, Mussolini — “escultores de montanhas”, símbolos de cegueira do rebanho humano, ídolos que substituem e equivalem, brinquedos perversos de crianças grandes, sonhos transformados em “verdades mortas”, infância, atavismo de paranóicos. A política é um trapézio. Direitos do povo, sufrágio universal… palavras. Dentro do demagogo há uma alma de tirano. Caída a máscara que atrai o rebanho humano, o ditador salta no picadeiro da política, as duas mãos ocupadas: em uma o “manganello” [cacete]; na outra, o óleo de rícino. Tem razão Aristóteles: “O meio de chegar à tirania é ganhar a confiança da multidão: o tirano começa sempre por ser demagogo. Assim fizeram Pisistraste em Atenas, Téagéne em Mégara, Denys em Siracusa”. Assim fez Mussolini. Quando um Rui Barbosa, por exemplo, falava tão alto contra os nobres pais da pátria, é porque tinha na alma o despeito louco de não ter sido elevado ao pico máximo da vontade de poder. Em política, age-se de modo inverso: os tribunos demagogos adulam o povo, elogiam a soberania do povo, proclamam os direitos do povo, prometem a felicidade do povo e sobem, empurrados pela embriaguez nacionalista e pelo servilismo e docilidade do povo, mas representado pela “população de cima”. Quem quiser subir aos picos da vontade de poder, não procura as vozes desassombradas e nem toma decisões sem ouvir a direção do seu partido. Obedecer é a escola de quem quer mandar. O político é um acrobata, e para alguém ser um acrobata tem de participar cedo a deslocar todas as juntas. O político quando sobe às culminâncias da glória e do poder, já se dobrou tanto, já se curvou, já se humilhou, já fez de tal modo o corpo em arco e a alma em camaleão que é capaz de se identificar com o molusco. Como deve ser difícil engolir a liberdade de opinião, a liberdade de consciência, a liberdade da imprensa, a coragem de proclamar alto as convicções — se fazemos parte de um partido definido, com declaração de princípios e afirmações categóricas e ação metodicamente organizada para derrubar partidos contrários ou dogmas religiosos que vêm ferir os nossos dogmas e pôr diques à nossa desenvoltura apostólica! Quando a imprensa é só louvor aos “eleitos” de cada partido político, se ninguém quer ouvir senão o que interessa aos seus planos e aos projetos e decisões do seu partido, se todos se preocupam com o cidadão e desprezam o homem livre, trata-se de ser sempre contra alguém, para subir, para vencer, custe o que custar; se obedecemos a lei em prejuízo da consciência; se fechamos os olhos para não ver e nos servimos da lógica como instrumento para abafar as vozes sinceras! Se semeamos ódio e as ambições, nas farsas patrióticas dos nacionalismos de partidos a se digladiarem pelo osso da vontade de poder, pelo osso do domínio e da glória política — abrimos alas a uma ditadura mussolinesca com todas as arlequinadas do “manganello”, batuta da orquestração paranóica do atavismo elevado à altura do gênio, e que há de representar condignamente a dignidade de Cônsul, como aquele cavalo célebre. Também nós, insensivelmente, pouco a pouco, preparamos o ambiente para que surja, neste país, um capataz, rebenque em punho, para gáudio dos acrobatas moluscos das democracias de demagogos. Somos uma nação de leis. E Sócrates já dizia: “É a lei que corrompe os homens. Quem quer que aconselhe: ‘Obedeça à lei’ — é corruptor aos olhos do filósofo. Mas, quem quer que aconselhe: ‘Obedeça à sua consciência’, é corruptor aos olhos do povo e dos magistrados.”(2) E, a propósito da liberdade da imprensa, nos lembremos ainda de Sócrates: “Parece-me bem insignificante a coragem que acha temíveis certas verdades.” Que será preciso para ser político ou servir a amigos políticos? Ouvir, observar, acatar, obedecer, curvar-se ante os paredros da política, louvar ao povo, cantar a soberania do povo, prometer liberdade e… fazer ginástica. Cada um de nós só tem o direito de governar a si mesmo. Ninguém pode exigir da consciência de outrem. Os homens se esqueceram da própria realização interior, para cuidar de todas as necessidades perfeitamente desnecessárias, criadas pela cupidez do capitalismo absorvente e pela perversidade inominável do industrialismo, de tudo, inclusive das consciências — organização social de cáftens e de vampiros do sentimento humano, mantida pela política, pelo capital, pelas religiões dominantes, que separa os humanos em vez de os unir, e pela força armada, escola de chacina para formar almas de canibais condecorados. Cada um de nós tem o seu governo interior: tudo o que vem de fora, não constituindo uma nota de beleza, de harmonia vibrando em uníssono com a nossa harmonia, é violência que gera violência, é ódio que gera ódio. Mandar, como obedecer, é covardia: degrada, avilta, imbeciliza o gênero humano.

*Maria Lacerda de Moura (1887-1945): anarquista brasileira de grande destaque nas lutas antifascistas, anti-clericais e feministas do século XX. Autora, entre outros, dos livros A mulher é uma degenerada?, Amai-vos e não multipliqueis.

(1) Extraído de A Plebe, São Paulo, nº19, 08/04/1933.
(2) Han Ryner. Les véritables entretiens de Socrate.

in: http://www.nu-sol.org/verve/pdf/Verve10.pdf (pp. 231-235).

por Jeca Sopro.