O Mito da Caverna (Platão)
O mito fala sobre prisioneiros (desde o nascimento) que vivem presos em correntes numa caverna, e que passam todo tempo olhando para uma parede onde são projetadas sombras de objetos iluminados pela luz gerada por uma fogueira, sombras de estátuas representando pessoas, animais, plantas e objetos. Os prisioneiros ficam dando nomes às imagens (sombras), analisando e julgando as situações.
Imagine que um dos prisioneiros foi liberado de suas correntes para poder explorar o interior da caverna e o mundo externo. Ele ao sair da caverna entrou em contato com a realidade e percebeu que passou a vida toda analisando e julgando apenas imagens projetadas por estátuas. Ao sair da caverna e entrar em contato com o mundo real ficou encantado com os seres de verdade, com a natureza, com os animais e etc. E então voltou para a caverna para passar todo conhecimento adquirido fora da caverna para seus colegas ainda presos. Porém, foi ridicularizado ao contar tudo o que viu e sentiu, pois seus colegas só conseguiam acreditar nas imagens que enxergavam na parede iluminada da caverna. Os prisioneiros o chamaram de louco, por expor aquelas ideias consideradas “absurdas”.
TRÓPICO DE CÂNCER
Henry Miller (1891/1980)
Não tenho dinheiro, nem recursos, nem esperanças. Sou o mais feliz dos homens vivos. Há um ano, há seis meses, eu pensava ser um artista. Não penso mais nisso.
Eu sou. Tudo quanto era literatura se desprendeu de mim. Não há mais livros a escrever, graças a Deus.
E isto então? Isto não é um livro. Isto é injúria, calúnia, difamação de caráter. Isto não é um livro, no sentido comum da palavra. Não, isto é um prolongado insulto, uma cusparada na cara da Arte, um pontapé no traseiro de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza… e do que mais quiserem. Vou cantar para você, um pouco desafinado talvez, mas vou cantar.
Cantarei enquanto você coaxa, dançarei sobre seu cadáver sujo…”
“A culpa é do governo”
É culpa do governo
Eu posso continuar na cerveja de todo dia
no pão branco da padaria
no assediar da minha cria
É culpa do governo
Eu posso continuar na maconha prensada
na carne mal passada
e dirigindo depois de tomar uma gelada
É culpa do governo
Eu posso continuar com meu discurso machista
culpando mulher por se assumir feminista
sem ter a mínima ideia do quanto eu sou racista
É culpa do governo
Eu posso continuar no insta tédio
sem refletir sobre o meu privilégio
dentro de um shopping disfarçado de prédio
É culpa do governo
Eu posso dar um rolé
Enquanto minha mulé
fica em casa
cuidando dos eres
E se ela pedir alguma “ajuda” eu digo
Quem é que alimenta a conta poupança
pra encher a pança dessas crianças?
E se um dia ela quiser separar
Aí dela se meus bens quiser levar
Quem foi que disse que cuidar de criança é sinônimo de trabalhar?
É culpa do governo
Eu posso continuar no miudinho
Dando aquele jeitinho
Mexeu comigo é viadinho
Aí se meu filho gostar de pintinho
A culpa é do governo
Eu posso continuar tomando banho de meia hora
Jogando metade da comida fora
E sempre tirando meu rabo da história
A culpa é do governo
Eu posso continuar assistindo novela
Se foi estuprada a culpa é dela
Pra não reclamar que chamei de cadela
A culpa é do governo
Eu vou continuar na massa
Sem pensar no que falo
Só reproduzindo desgraça
A culpa é não é do governo
A culpa é da nossa hipocrisia
que alimenta o sistema
e hoje se fez poesia.
Não tenho paciência pro teu drama!
mi mi mi de homem me cansa.
Chega dizendo que quer entender
mas nem ao menos escuta.
Pense bem, macho, na sua conduta!
Fala demais, diz que é e faz
mas na hora dá pra trás
e inventa uma desculpa.
E depois, é na mulher que tu põe a culpa.
Não se esqueça, homem:
SOMOS TODXS FILHXS DAS PUTAS!
A história se repete e a realidade é foda.
Tem um macho passando vergonha toda hora.
E é sempre os mesmos papos
de que a gente não sabe o que quer…
Mas é você, macho, que não sabe respeitar mulher.
Vem falar de TPM, cara ?!
NÃO FODE !
O que tu sabe sobre ser mulher, se nem gerar tu pode ?!
Se tu sangrar um dia inteiro tu morre.
Mulher sangra de 3 a 8 dias todo mês
e taê firme e forte.
A gente gera, move hera, move tempo.
Mulher é TERRA, brota a semente por dentro.
Durante nove meses o corpo muda,
gera vida, cria, atura.
Criatura que um dia cresce
e pode acabar que nem você…
Cheio de frescuras.
Antes de falar da mulher,
Antes de chegar numa mulher,
Antes de amar uma mulher…
Lembre-se! Pense bem!
Mulher não é comida!
E não ache que essa carniça que tu chama de pica é a melhor coisa que tem.
Então, pega a visão e se plante, homem, ESCUTA!
Não vem pra cá atrasar meu lado,
RESPEITA A NOSSA LUTA!
Depois da inquisição toda mulher agora é Bruxa.
A gente sabe bem o que quer
e quase sempre ta explícito,
Só que macho não enxerga além do seu próprio umbigo.
E não me vem cagar regra que eu não admito isso.
Todo mês eu Sangro.
Há dias.
Há anos.
MULHER MOVE O INFINITO!
São essas as regras.
Esse é meu grito!
Respeita e aceita que o mundo é isso.
Chega de macho prepotente e iludido.
(Fernanda Abreu)
Mulheres Negras
Enquanto o couro do chicote cortava a carne,
A dor metabolizada fortificava o caráter;
A colônia produziu muito mais que cativos,
Fez heroínas que pra não gerar escravos matavam os filhos;
Não fomos vencidas pela anulação social,
Sobrevivemos à ausência na novela, no comercial;
O sistema pode até me transformar em empregada,
Mas não pode me fazer raciocinar como criada;
Enquanto mulheres convencionais lutam contra o machismo,
As negras duelam pra vencer o machismo,
O preconceito, o racismo;
Lutam pra reverter o processo de aniquilação
Que encarcera afros descendentes em cubículos na prisão;
Não existe lei maria da penha que nos proteja,
Da violência de nos submeter aos cargos de limpeza;
De ler nos banheiros das faculdades hitleristas,
Fora macacos cotistas;
Pelo processo branqueador não sou a beleza padrão,
Mas na lei dos justos sou a personificação da determinação;
Navios negreiros e apelidos dados pelo escravizador
Falharam na missão de me dar complexo de inferior;
Não sou a subalterna que o senhorio crê que construiu,
Meu lugar não é nos calvários do brasil;
Se um dia eu tiver que me alistar no tráfico do morro,
É porque a lei áurea não passa de um texto morto;
Não precisa se esconder segurança,
Sei que cê tá me seguindo, pela minha feição, minha trança;
Sei que no seu curso de protetor de dono praia,
Ensinaram que as negras saem do mercado
Com produtos em baixo da saia;
Não quero um pote de manteiga ou um xampu,
Quero frear o maquinário que me dá rodo e uru;
Fazer o meu povo entender que é inadmissível,
Se contentar com as bolsas estudantis do péssimo ensino;
Cansei de ver a minha gente nas estatísticas,
Das mães solteiras, detentas, diaristas.
O aço das novas correntes não aprisiona minha mente,
Não me compra e não me faz mostrar os dentes;
Mulher negra não se acostume com termo depreciativo,
Não é melhor ter cabelo liso, nariz fino;
Nossos traços faciais são como letras de um documento,
Que mantém vivo o maior crime de todos os tempos;
Fique de pé pelos que no mar foram jogados,
Pelos corpos que nos pelourinhos foram descarnados.
Não deixe que te façam pensar que o nosso papel na pátria
É atrair gringo turista interpretando mulata;
Podem pagar menos pelos os mesmos serviços,
Atacar nossas religiões, acusar de feitiços;
Menosprezar a nossa contribuição na cultura brasileira,
Mas não podem arrancar o orgulho de nossa pele negra;
Refrão:
Mulheres negras são como mantas kevlar,
Preparadas pela vida para suportar;
O racismo, os tiros, o eurocentrismo,
Abalam mais não deixam nossos neurônios cativos.
Eduardo Taddeo (ex-Facção Central)
MANIFESTO (FALO POR MINHA DIFERENÇA) [1]
Não sou Pasolini pedindo explicações
Não sou Ginsberg expulso de Cuba
Não sou uma bicha disfarçada de poeta
Não preciso de disfarces
Aqui está minha cara
Falo por minha diferença
Defendo o que sou
E não sou tão esquisito
Me repugna a injustiça
E suspeito dessa dança democrática
Mas não me fale do proletariado
Porque ser pobre e bicha é pior
Há que ser ácido para suportar
É ter que dar voltas nos machinhos da esquina
É um pai que te odeia
Porque o filho desmunheca
É ter uma mãe de mãos marcadas pelo cloro
Envelhecidas de limpeza
Embalando de doença
Por maus modos
Por má sorte
Como a ditadura
Pior que a ditadura
Porque a ditadura passa
E vem a democracia
E desvia para o socialismo
E então?
Que farão com nossos companheiros?
Irão nos amarrar às tranças em fardos
com destino a um sidário [2] cubano?
Irão nos enfiar em algum trem para parte alguma
Como no barco do general Ibáñez
Onde aprendemos a nadar
Mas ninguém chegou até à costa
Por isso Valparaíso apagou suas luzes vermelhas
Por isso as casas de caramba [3]
Brindaram com uma lágrima negra
Aos carneiros comidos pelos caranguejos
Este ano que a Comissão de Direitos Humanos
Não lembra
Por isso companheiro te pergunto
Existe ainda o trem siberiano
da propaganda reacionária?
Esse trem que passa por suas pupilas
Quando minha voz fala demasiado doce
E você?
Que fará com essa lembrança de meninos
Nos pajeando e outras coisas
Nas férias de Cartagena?
O futuro será em preto e branco?
O tempo correrá noite e dia
sem ambiguidades?
Não haverá uma bichona em alguma esquina
desequilibrando o futuro de seu novo homem?
Vão nos deixar bordar pássaros
nas bandeiras da pátria livre?
O fuzil eu deixo a você
Que tem o sangue frio
E não é medo
O medo foi indo embora de mim
Atacando com facadas
Nos inferninhos sexuais onde andei
E não se sinta agredido
Se te falo dessas coisas
E te olho o volume
Não sou hipócrita
Acaso os peitos de uma mulher
Não o faz baixar os olhos?
Você não acredita
Que sozinhos na serra
Algo nos aconteceria?
Embora depois me odiasse
Por corromper sua moral revolucionária
Tem medo que se homessexualize a vida?
E não falo de te enfiar e tirar
e tirar e te enfiar somente
Falo de ternura companheiro
Você não sabe
Como custa encontrar o amor
Nestas condições
Você não sabe
O que é carregar essa lepra
As pessoas ficam à distância
As pessoas compreendem e dizem:
É viado mas escreve bem
É viado mas é um bom amigo
Super-boa-onda [4]
Eu não sou boa-onda
Eu aceito o mundo
Sem lhe pedir essa boa-onda
Mas ainda assim riem
Tenho cicatrizes de risos nas costas
Você acredita que eu penso com o pau
E que à primeira parrillada [5] da CNI [6]
Eu ia soltar tudo
Não sabe que a masculinidade
Nunca a aprendi nos quartéis
Minha masculinidade me ensinou a noite
Atrás de um poste
Essa masculinidade de que você se gaba
Te enfiaram em um regimento
Um milico assassino
Desses que ainda estão no poder
Minha masculinidade não recebi do partido
Porque me rechaçaram com risadinhas
Muitas vezes
Minha masculinidade aprendi militando
Na dureza desses anos
E riram da minha voz afeminada
Gritando: vai cair, vai cair
E embora você grite como homem
Não conseguiu que caísse
Minha masculinidade foi amordaçada
Não fui ao estádio
E me peguei aos trancos pelo Colo Colo [7]
O futebol é outra homossexualidade encoberta
Como o boxe, a política e o vinho
Minha masculinidade foi morder as provocações
Engolir a raiva para não matar todo mundo
Minha masculinidade é me aceitar diferente
Ser covarde é muito mais duro
Eu não dou a outra face
Dou o cu companheiro
E esta é a minha vingança
Minha masculinidade espera paciente
Que os machos fiquem velhos
Porque a esta altura do campeonato
A esquerda corta seu cu flácido
No parlamento
Minha masculinidade foi difícil
Por isso não subo nesse trem
Sem saber aonde vai
Eu não vou mudar pelo marxismo
Que me rechaçou tantas vezes
Não preciso mudar
Sou mais subversivo que vocês
Não vou mudar somente
Pelos pobres pelos ricos
Ou outro cachorro com esse osso
Tampouco porque o capitalismo é injusto
Em Nova Iorque as bichas de beijam na rua
Mas esta parte deixo para você
Que tanto se interessa
Que a revolução não se apodreça completamente
A vocês entrego esta mensagem
E não é por mim
Eu estou velho
E sua utopia é para as gerações futuras
Há tantas crianças que vão nascer com a asinha quebrada
E eu quero que voem companheiro
Que sua revolução
Dê a eles um pedaço de céu vermelho
Para que possam voar
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* Pedro Lemebel (chileno, 1955) é ensaísta, cronista e romancista. Conhecido por sua crítica ao autoritarismo e suas representações humorísticas da cultura popular chilena, a partir de uma perspectiva não convencional.
[1] Este texto foi lido como intervenção em um ato político da esquerda em setembro de 1986, em Santiago, Chile. Leia o poema original aqui: http://lemebel.blogspot.com.br/…/manifiesto-hablo-por-mi-di…
[2] Apesar de Sidario ser um nome próprio muito comum no Chile, o autor o usa como substantivo para denominar clínicas para tratamento de soropositivos. Cf.: livro de crônicas de Pedro Lemebel chamado “Loco afán: crónicas de sidariorio”, com textos que tratam, sobretudo, da marginalização de travestis e AIDS.
[3] Casas onde se cantam tonadillas. O termo alude à cantora tonadillera do século XVIII Maria Antónia Fernández, cujo apelido era Caramba.
[4] No original “buena-onda”, um trocadilho: alegre/ fresco.
[5] Prato típico chileno com diversos tipos de carne e frutos do mar, naturalmente no poema se trata de um trocadilho.
[6] CNI – Central Nacional de Informaciones de Chile – foi um organismo de inteligência do regime militar chileno. Criada em 1977, foi responsável por inúmeros casos de infiltração política, assassinatos, sequestros e tortura aos opositores do regime, além de estar relacionada ao roubo de banco e o tráfico de drogas e armas. Foi dissolvida em 1990, pouco antes do retorno da democracia. Muitos de seus agentes então foram realocados em outros cargos públicos, inclusive de segurança.
[7] Time de futebol chileno.
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– Tradução de Nina Rizzi, especial para a Revista Ellenismos, 27: des-construindo o gênero.
“Sobre meus amigos suicidas”.