Ⓐnarquia GaúchⒶ

Os Expropriadores da Rua da Praia.

Porto Alegre, 1911.
A violência é a conseqüência lógica da situação criada pelos governos, que teimam em tratar como escravos homens que tem aspiração da liberdade. A Anarquia não conduz à prática da violência. A lenda que diz ser um movimento organizado para assassinar e destruir é uma infâmia espalhada com o fim de denegrir seus partidários. Nenhum anarquista prega a revolta pela revolta nem jamais pratica algum ato de violência que não responda a alguma grande injustiça por parte do poder. Os anarquistas praticam a resistência contra a violência contra eles dirigida.

Stefan, Pablo, Alexander e FeodorStefan, Pablo, Alexander e Feodor


PORTO ALEGRE 1911.
OS EXPROPRIADORES DA RUA DA PRAIA

“Quando se vê algum fato levado a cabo por algum anarquista ou a ele atribuído, surge a antiga lenda de um movimento de terror, organizado exclusivamente para praticar a violência contra tudo e contra todos, com a pretensão de transformar a sociedade. Não fosse essa concepção arbitrária e sem fundamento e os nossos adversários não poderiam sentenciar: os anarquistas querem transformar a sociedade à força de bombas de dinamite. Logo, segundo essa lógica manipuladora, os anarquistas são criminosos vulgares e doentes perigosos, que devem ser imediatamente eliminados da sociedade. E é justamente nesse falso raciocínio, nessa desleal alteração de princípios que está a força de sua bárbara argumentação contra os anarquistas. Reconhecer este antigo erro seria nobre e digno, mas então sob que pretexto iriam reclamar o cárcere e a forca para os partidários da Anarquia? Como justificar o extermínio dos pretensos forjadores do terrorismo?

A violência é a conseqüência lógica da situação criada pelos governos, que teimam em tratar como escravos homens que tem aspiração da liberdade. A Anarquia não conduz à prática da violência. A lenda que diz ser um movimento organizado para assassinar e destruir é uma infâmia espalhada com o fim de denegrir seus partidários. Nenhum anarquista prega a revolta pela revolta nem jamais pratica algum ato de violência que não responda a alguma grande injustiça por parte do poder. Os anarquistas praticam a resistência contra a violência contra eles dirigida.”
Reynaldo Frederico Geyer. Redação de A Luta.

Terça-feira, 5 de setembro de 1911.

O empregado Alcides Brum deixa a pensão onde morava e dirige-se até o Centro de Porto Alegre para as 8hs abrir a casa de câmbio do Sr. Virgílio d’Oliveira Albuquerque, na Rua da Praia.
Os prédios daquela quadra tinham a mesma fisionomia. Sobrados de duas ou três portas, estabelecimentos comerciais no térreo e residências no segundo piso. A casa de câmbio, no número 210, tinha duas portas, uma delas transformada em vitrine. Ao se aproximar da loja, Alcides constatou que os outros estabelecimentos permaneciam fechados.
Depois de instalado avista a chegada dos primeiros clientes do dia. Quase oito e quinze. Percebeu que os quatro visitantes eram bem diferentes dos senhores bem trajados e de aspecto “respeitável” que freqüentavam a casa.
Os três que se aproximaram do balcão usavam bonés de viagem e tinham fisionomia parecida, quase o mesmo porte físico robusto e um reconhecível traço estrangeiro. Dois vieram na direção do balcão, um permaneceu na porta em flagrante agitação e o quarto homem ficou do lado de fora. Parecia ser o mais velho, sugeria uns 30 anos. Em segundos sacaram as pistolas automáticas.
Na Barbearia Brazil, defronte a casa de câmbio, um freguês era atendido quando interrompe o serviço o estampido de um tiro, seguido de mais dois. Dali se enxerga um homem gritando da porta para o interior da casa de câmbio num idioma estranho. Através da vitrine duas mãos nervosas recolhendo os valores ali expostos, usando o próprio feltro como sacola.
Quatro homens armados deixaram o estabelecimento. Um deles empunhava uma pistola mauser alemã ainda fumegante. Estava consumado o primeiro assalto a mão armada deste tipo ocorrido em Porto Alegre.
Vizinhos de todos os lados já se punham em alvoroço. Os atracadores fugiram em direção a Rua do Comércio a passos regulares, com as pistolas enfiadas nos bolsos. O interior da casa de câmbio deixava cheiro de pólvora. Atrás do balcão, diante do cofre aberto, Alcides Brum gemia ensangüentado no chão.
O delegado Chico Flores, chefe do 3° posto da Polícia Judiciária e inscrito no Partido republicano foi acionado. Era avisado do assalto que acabara de ocorrer em plena Rua da Praia. Os assaltantes fugiam em disparada.
Dobrando a esquina em carreira ruma a Praça XV, um guarda mira quatro vultos. Os fugitivos já de armas em punho alcançaram o largo do Mercado Público, esquivando-se das carretas, carroções de todos os tamanhos e alguns poucos automóveis que trafegavam por ali. Empregados das lojas e operários que construíam o segundo piso do Mercado paralisaram seu trabalho para dar atenção ao que acontecia.
Quatro homens corriam pelo meio da rua, seguidos de uma multidão de populares e alguns guardas municipais armados de facas. Os fugitivos pularam sobre o carro de aluguel n°21, o primeiro da fila da Companhia de Carruagens, estacionado na ponta da Praça XV.
Com o cocheiro rendido, um dos homens tomou as rédeas da carruagem. Em vez de seguir em frente, subindo a Marechal Floriano, decidiu fazer meia-volta e jogar o veículo contra os perseguidores, abrindo uma clareira.
O vendedor da loja de armas da Rua Marechal Floriano pôde reconhecer os dois homens que se postaram na boléia e as pistolas que empunhavam. Três dias antes, sábado de manhã, eles estiveram na loja. O balconista desconfiou dos estranhos. Durante cerca de meia hora manusearam armas de caça, de tiro ao alvo, fuzis flobert, rifles winchester de repetição e pelo menos uma dúzia de pistolas de várias marcas e calibres. Demonstravam falta de intimidade com as armas de fogo.
Apresentaram-se como argentinos, falavam em espanhol, mas conversaram entre eles num idioma desconhecido. Escolheram uma pistola mauser alemã 7.63 milímetros de 10 tiros, ao preço de 120 mil réis, e um revólver browning norte-americano de seis tiros por 80 mil. Compraram também cerca de 200 balas. Pagaram com notas autênticas.
Na terça-feira os estranhos compradores estavam disparando com as armas para cima montados na boléia da carruagem depois da expropriação do câmbio. Na esquina da loja Tabak, o veículo dobrou bruscamente à direita, tomando velocidade na Rua Voluntários da Pátria.
Antes das oito e meia da manhã, a Rua Voluntários da Pátria fervilhava. Nos dois lados da rua, carruagens, carroças puxadas a boi, charretes e automóveis buscavam ou descarregavam mercadorias nas pequenas indústrias e no intenso comércio local. O espaço já congestionado da rua foi repentinamente rasgado por uma carruagem, ziguezagueando a toda velocidade. Dois homens disparavam para o alto. Atrás dela, dezenas de curiosos e guardas da Polícia Administrativa de facões, soprando os apitos.
Depois de andar duas quadras desviando e esbarrando em outros veículos, o cocheiro perdeu o controle e a carruagem dos homens armados foi de encontro a um carroção estacionado na Praça dos Bombeiros, diante do Teatro Colyseu, um pouco adiante da Usina Elétrica. O cavalo foi jogado à traseira do outro veículo, sendo atingido pelo varal da carroça que lhe atravessou o peito. Os quatro expropriadores foram derrubados.
Logo do tombo disparam rumo à Rua da Conceição, com os perseguidores nas costas. O pânico agita as ruas de Porto Alegre.
O bonde número 35 da linha Navegantes deveria chegar ao abrigo da Praça Senador Florêncio pontualmente as 8 e 40 da manhã. Os foragidos armados se acercam do bonde. O motorneiro tenta acelerar quando é interrompido pelas ordens dos quatro homens que pulam no vagão em movimento e mandam acionar o freio. Calçado pela pistola o motorneiro inverte o sentido da manivela e movimenta o bonde de volta na direção do bairro. As senhoras que restavam como passageiras eram acalmadas pelos expropriadores com a promessa que nada lhes aconteceria.
A manivela chegava aos sete pontos, velocidade fora da rotina. Quando o bonde dobrou a esquina da Voluntários da Pátria com a Rua do Parque, no trecho onde se entroncavam os trilhos das linhas Navegantes e São João, o motorneiro propositadamente deixou de abrir a chave, fazendo com que a carretilha se desprendesse dos fios elétricos. Sem força, o vagão andou mais alguns metros, movido por inércia até parar completamente.
A fuga volta para a Voluntários da Pátria rumo à zona norte. Um jovem leiteiro vê de relance desde a porta do armazém quatro homens correndo assustados pelos trilhos.
O rapaz curioso sobe na carrocinha e se põe a persegui-los. Ao ganhar proximidade e percebido sozinho pelos fugitivos, foi rendido pelo revólver apontado de um dos homens. Dominado o entregador de leite, fogem em sua carroça.
O leiteiro conduzia a carroça puxada por um cavalo, espremido entre dois estranhos e calçado pela pistola. A carrocinha tomou o rumo do extremo norte, quando a Voluntários da Pátria mudava o nome para Avenida Navegantes, sobraram algumas chácaras e plantações de arroz e cevada.
Diante de uma das chácaras situadas no final da Rua Dona Teodora, a carroça estaciona no pátio. Os ocupantes partem para os matos em direção ao Rio Gravatahy.
A identidade dos fugitivos ainda é desconhecida. O delegado Chico Flores é informado de uma prisão feita uns meses atrás de quatro judeus. Eram estrangeiros como os assaltantes e no interrogatório se declaravam anarquistas. A polícia passa a organizar as operações de busca.
A Estação Ferroviária de Gravatahy é feita de quartel-general, pela localização, facilidade de acesso e por dispor de telefonia. Patrulhas percorrem a Rua São José e vigiam a estrada de Canoas e a ponte de Gravatahy. As lanchas da Brigada Militar foram usadas para ronda no rio de ponta a ponta, retirando as canoas das margens. Chico Flores ganha o comando oficial das forças policiais.

Não são criminosos comuns…

O crime da casa de câmbio e a fuga espetacular dos atracadores abrem um debate na capital. Cada qual procura explorar os fatos e ganhar força nas disputas políticas e sociais daqueles anos. Na esfera da política dominante “A Reforma”, órgão dos federalistas procura atacar as fraquezas do governo do Partido Republicano sob a sombra de Borges de Medeiros e recuperar-se do desprestígio.
Da parte dos republicanos vem a pressa de resolver este caso pelas mãos da sua polícia e atravessar a turbulência sem perder credibilidade na opinião pública. Borges quer preso todos os suspeitos para repor a ordem pública, enganando a sensação de desgoverno no centro da cidade.
O movimento dos trabalhadores marca em junho a vitória do anarquismo classista nas eleições da Federação Operária do RS. Desde a greve dos 21 dias em 1906 vinham se fortalecendo, se dedicando, freqüentando as fábricas e mobilizando o operariado. Aos poucos os anarquistas foram ganhando posição, conquistando a direção de importantes uniões sindicais, engrossando suas filas e alijando os socialistas, entre eles o líder Xavier da Costa. Para o socialista Carlos Cavaco o novo acontecimento era oportunidade, pelas vinculações suspeitas dos seus protagonistas com o anarquismo, de fazer propaganda contra seus adversários no movimento operário.
As especulações sobre o caso corriam nas bocas. “Não são, definitivamente, criminosos comuns, desses que se movem pela ambição mais rasteira de enriquecer às custas do crime. São agitadores anarquistas agindo, quiçá, por motivações políticas, o que fornece outros ingredientes que ainda não consegui aquilatar.” Ponderava o delegado Chico Flores numa dessas conversas investigativas. “Durante a fuga, não se dispersaram, mesmo nas horas mais dramáticas. Pelo menos duas vezes, algum deles caiu ao chão e os outros o socorreram. Não resta dúvida que os tipos estão unidos, para o que der e vier. Talvez até exista um pacto entre eles.”
Na sala da FORGS, pela noite, depois de uma palestra do médico Reynaldo Geyer na Escola Racional Eliseu Reclus, iniciava a reunião de um grupo de militantes operários de filiação anarquista. Estavam presentes o pedreiro italiano Luigi Derivi, o alfaiate polonês Stephan Michalski e os gráficos Lucídio Prestes, Polidoro Santos e José Rey Gil com o jornal republicano aberto sobre a mesa.
Preocupados pela repercussão, tinham dúvidas se a autoria do assalto era mesmo de anarquistas. De qualquer modo precisavam defender suas idéias e a influência que haviam conquistado entre os trabalhadores. Comentava-se entre eles que o assalto tinha semelhanças com várias ações de expropriação realizadas por companheiros da Europa e que seria conveniente se informar melhor. A reunião decidiu então por um artigo encomendado a Reynaldo Geyer para a imprensa libertária. Algo genérico, marcava a linha Derivi, relacionando a luta de classes, a violência institucional. Historicamente, acusam os anarquistas de prática de terrorismo. O texto deveria dizer que os anarquistas não são violentos, mas apenas reagem à violência inerente ao poder, à existência da autoridade.

Flores aos rebeldes que tombaram…

O comandante das operações de busca já contava com o apoio de 30 agentes policiais, 10 soldados do piquete policial, uma equipe do segundo distrito e alguns oficiais da Brigada Militar. Pelas 5 horas da tarde era enviado mais um reforço do 1° Batalhão da Brigada com 34 soldados. O chefe republicano Borges de Medeiros queria mais.
Os judeus foram alçados a condição de principais suspeitos e as forças policiais passaram as prisões sumárias. A pequena comunidade judaica de Porto Alegre era formada por alguns desgarrados alemães, poloneses e austríacos vindos especialmente à Argentina, onde o governo fazia restrições aos estrangeiros. A eles, vinham se somando imigrantes russos que, aos poucos, deixavam a Colônia Philippson, por não conseguirem se adaptar a vida agrícola. Em geral haviam emigrado da Europa para fugir ao recrudescimento dos pogroms e buscavam novas oportunidades no Novo Mundo.
A polícia investigava uma loja de judeus chamada La Flor de Buenos Aires. Quatro irmãos de sobrenome Zweible, caixeiros-viajantes da loja, foram detidos um tempo atrás por suspeita de contrabando ou passar dinheiro falso e soltos em seguida. Um deles havia se declarado anarquista. Mas a informação revelava que os irmãos Zweible eram três e não quatro.
A imprensa tinha outra pista. O incêndio de uma loja na Andrade Neves feito por quatro russos. Um jornalista das páginas policiais se apresentou na Loja Franceza, um empório de tecidos da dita rua. Perguntado o dono da loja explicava que havia despedido um empregado de conduta inadequada que fazia exigências descabidas. Era russo e se chamava Pincus Isner. Dizia que o patrão é um chupador de sangue e queria reduzir o horário de trabalho e aumentar o salário de todos os seus companheiros. Alguns dias depois, outros quatro russos estiveram na loja fazendo ameaças de morte ao dono, caso não fosse atendida a reivindicação. Mais um tempo e sucedeu um misterioso incêndio na loja, no setor de tecidos mais finos. Deram prejuízo. O dono soube que eram todos anarquistas com ficha na polícia de Buenos Aires.
Depois de demitido Pincus Isner havia partido para São Paulo. O repórter policial tendo o procurado na pensão pobre que vivia chega até outro russo que andava com ele. Yurian Kirienko, trabalhava no Mercado Público e freqüentava a escola dos sindicalistas Eliseu Reclus. Foi um dos tantos que emigrou da Rússia, logo após o fracasso da Revolução em 1906, quando o regime czarista intensificou a perseguição aos socialistas e aos anarquistas. Embarcou clandestinamente em um navio estrangeiro e passou a vaguear de porto em porto. Na Argentina conheceu gente da Federação dos Trabalhadores Russos, a qual passou a freqüentar. Quando o governo começou a hostilizar os estrangeiros e reprimir com violência os que se envolviam com política, um dos amigos, Alexander Grauberger, o Sasha, o convidou para se mudarem a Porto Alegre, onde viviam os familiares dele.
Yurian Kirienko trabalhou como pedreiro e participou da greve vitoriosa de junho pela redução da jornada de trabalho, mas foi demitido logo depois. O amigo Sasha conseguiu para ele um emprego na fiambreria onde também trabalhava e ensinou o ofício. Além disso o levava para as aulas da Escola Racional. Os outros russos envolvidos no incêndio da Loja Franceza eram Pablo, Fedko e Stefan.
Alexander Grauberger, o Sasha, era feito suspeito principal. Morava no fundo da cantina onde trabalhava. Segundo o patrão era anarquista, o melhor empregado que já teve. Guardava no baú livros bem cuidados sobre socialismo, anarquismo e doutrinas revolucionárias de autores como Errico Malatesta, Mikhail Bakunin, Pierre-Joseph Proudhon e Max Nettlau, escritos em russo, alemão e espanhol. O jornalista não o encontrara na visita feita ao seu quarto neste dia em que se consumara o assalto.
Chegada a noite e os expropriadores permaneciam refugiados nos banhados do Gravatahy, sem chances de fuga. Todos os acessos por terra e pelo rio estavam bem vigiados. O capitão José Maria Vianna fora destacado para a operação, protagonista de feitos épicos durante a guerra de republicanos e federalistas em 1893. As forças policiais contavam com o piquete presidencial, uma força de elite com 20 praças; mais um batalhão da Brigada Militar e uma equipe da Polícia Judiciária com 43 agentes. Duas horas antes, haviam chegado mais 24 agentes do 1° posto. Haviam decidido manter o cerco pela madrugada e iniciar a ofensiva final nas primeiras horas da manhã.
No processo da investigação os irmãos Zweible tinham sido presos e descartados. Não conferiam as suspeitas. Os atracadores se fizeram passar pelas suas identidades. Alexander Grauberger era o foco agora.
Por volta das quatro horas da madrugada, os fugitivos se aproximaram da ponte do Rio Gravatahy, arrastando-se sorrateiramente pelo chão, mas foram percebidos e rechaçados a tiros pelo comandante da escolta. Um pouco mais tarde, tentaram passar a linha de baionetas montada ao longo da estrada de ferro. Investiram contra um dos soldados e chegaram a disparar contra ele, mas foram repelidos e retornaram a mata.
Às seis horas da manhã, quando o cinza da noite úmida começava a clarear, as forças policiais estavam de prontidão. Uma equipe ficaria responsável pelo policiamento externo e outras duas lideradas pelo delegado Chico Flores e pelo capitão José Maria Vianna, ingressariam na mata a partir de dois pontos diferentes. A ordem era atirar ao menor gesto de reação dos bandidos, fazer fogo à vontade!
O maricazal dos banhados do Gravatahy ainda permanecia envolto por uma névoa densa e escura que dificultava a visão além de dez metros de distância. Em muitos trechos soldados e policiais eram obrigados a caminhar com água pelo peito. Assim que um cabo se perdeu do resto da patrulha.
O cabo Manoel andava perdido, gritava pelos colegas sem resposta esse deixava dominar pelo medo até que enxergar o esboço de uma figueira com algumas vozes imprecisas. À sua frente surgiu um vulto corpulento, quando percebe que o homem estava armado. Empunhou a corneta e começou a tocar.
O estranho apontou a arma e errou o tiro, enquanto que o cabo segurou a corneta pelo bocal e acertou a cabeça do agressor, que cambaleou. Era Sasha, acusaram os gritos de seus companheiros.
Em poucos minutos os soldados da Brigada acercaram-se da figueira, localizada numa pequena ilha em meio ao banhado, e se lançaram na água de carabina em punho. Iniciaram uma artilharia pesada contra o homem estonteado e os demais entrincheirados na figueira. Os fugitivos revidaram com suas pistolas de repetição.
O tiroteio durou menos de três minutos. Ao se certificar de que não havia mais reação dos fugitivos, o capitão Vianna ordenou o cessar-fogo. Os corpos caídos no barral ainda eram sacudidos por novos disparos. Por fim, emudeceram as mauser. Oito e quinze da manhã.
Chico Flores mandou então que fossem removidos os corpos, amarrados pelas mãos uns aos outros e puxados por dentro d’água pelos soldados a cavalo. Os cadáveres foram amontoados em uma carreta e transportados até a estação de Gravatahy.
Na noite anterior, o jornal republicano e governista A Federação publicava que já havia perto de vinte judeus presos, parecendo que se trata de uma terrível quadrilha, estando a polícia na sua pista.
No 3° posto, na Rua da Floresta, autoridades políticas e policiais junto da imprensa recebia a expedição com fogos de artifício. Antes que os corpos fossem transferidos para o desfile pelas ruas no carro fúnebre da assistência municipal Edward Grauberger reconhece seu irmão entre os mortos. Apontou junto de Sasha: Stefan Sedoresky, Pablo Pavlowsky e Feodor…
Operários de origem russa, segundo a viúva que os tinha como inquilinos, mas não eram judeus revelava o laudo médico ao não encontrar sinal de circuncisão. Sasha, como reconhecia Reynaldo Geyer, dentro do anarquismo se filiava aos grupos de ação direta, defendia que a politização dos operários nascia de momentos de choque, nas táticas de greves e mobilizações.
Os quatro corpos haviam sido transferidos para o Cemitério da Santa Casa e enterrados na madrugada de quinta-feira, para evitar tumultos. Eram lápides de pedra bruta que mostravam números em lugar dos nomes. Logo de manhã estavam cobertas de flores, mais alguns dias pétalas de rosas e velas acesas. Sem ninguém ter sido visto.

Livre adaptação do livro Tragédia da Rua da Praia. Uma história de sangue, jornal e cinema. Rafael Guimaraens. Editora Livretos. 2005.


A Greve Geral de 1917 e a LDP

Contribuição à memória de luta da classe operária

No inicio do século XX, foi de muita importância a participação dos anarquistas e do sindicalismo revolucionário no sentido de construção de uma cultura de combate, ação direta e de mobilização permanente. Muitas das várias entidades do movimento operário brasileiro do período: os sindicatos por ramos e ofícios, as ligas e uniões operárias, as federações estaduais, a Confederação Operária Brasileira (fundada em 1906) estavam sob forte influência dos anarquistas.

Concentração do movimento grevista na Rua da Praia. Porto Alegre 1917.
Concentração do movimento grevista na Rua da Praia. Porto Alegre 1917.


A GREVE GERAL DE 1917:
Contribuição à memória de luta da classe operária*Anderson Romário Pereira Corrêa
A efervescência do operariado brasileiro, que culmina no movimento grevista de 1917, tem na inter-relação de vários fatores econômico-sociais suas possíveis explicações: a ação organizativa e propagandista do sindicalismo revolucionário – ou seja, o processo implementado pelos militantes anarquistas ao movimento operário; e a conjuntura econômica proporcionada com a crise gerada pela forma com que a economia brasileira estava inserida ao capitalismo internacional durante a Primeira Guerra Mundial. O seguinte trabalho se desenvolverá descrevendo primeiro a cultura combativa de segmentos da classe operária, e em seguida a conjuntura de crise econômica do período da Primeira Guerra Mundial acirrando-se em 1917 e a “luta e organização” das mobilizações populares em 1917 no Rio Grande do Sul.

Além da conjuntura de crise econômica, os operários gaúchos também agiram em reflexos as mobilizações nos outros estados do centro do país (alguns historiadores apontam inclusive as primeiras noticias da Revolução Russa como motivadores das mobilizações proletárias). Aqui no sul destaca-se o papel dos militantes anarquistas, dos operários da Viação Férrea, a Liga de Defesa Popular de Porto Alegre, o Comitê de Defesa Popular em Pelotas.

Cultura combativa e luta de classes: De nada adianta haverem conjunturas de acirramento das contradições, crises econômicas etc.; estes “momentos” de crise somente proporcionam ações de caráter reivindicativo e de acúmulo revolucionário se houverem ambientes e cultura popular com “identidade de classe” que saibam aproveitar estas conjunturas e acirrarem as lutas. Destacamos o papel de incansáveis militantes, abnegados na luta de classes. É fundamental o nível de conscientização, o grau de mobilização e capacidade de organização do movimento social no que se refere a sua ação política e social. Estes elementos estão inter-relacionados.

No inicio do século XX, foi de muita importância a participação dos anarquistas e do sindicalismo revolucionário no sentido de construção de uma cultura de combate, ação direta e de mobilização permanente. Muitas das várias entidades do movimento operário brasileiro do período: os sindicatos por ramos e ofícios, as ligas e uniões operárias, as federações estaduais, a Confederação Operária Brasileira (fundada em 1906) estavam sob forte influência dos anarquistas. Implementavam um sindicalismo revolucionário na maioria das entidades que tinham condições de estabelecer hegemonia política: Consideravam que o sindicalismo não deveria envolver-se na disputa eleitoreira da “democracia burguesa”, não deveria atrelar-se à partidos políticos, em fim, preconizavam a independência de classe em relação à agenda burguesa e aos patrões. Seus métodos eram os da ação direta e a greve geral com propósitos revolucionários, orientados a um objetivo de construção de uma nova sociedade socialista e libertária, ou como eles diziam na época: comunismo libertário (anarquista).

Os militantes operários buscavam abarcar todos os espaços possíveis do cotidiano da família proletária. Além do companheirismo nos locais de trabalho, de passarem as mesmas dificuldades, sofrerem juntos os mesmos problemas: salários baixos, jornadas cansativas e insalubridades – os militantes operários (anarquistas) proporcionavam através dos sindicatos, centros de cultura social, escolas e universidades populares, jornais, teatros, piqueniques, em fim, várias oportunidades de cultura, lazer e luta. Assim construíam uma “cultura de classe” e identidade de luta permanente. No Rio Grande do Sul muitos dos militantes de 1917 foram “formados” nas escolas racionalistas mantidas pelos militantes libertários.

A conjuntura e crise: O Brasil inseriu-se na 1º Guerra Mundial como fornecedor de gêneros alimentícios às populações civis e às tropas da “Entende”. As exportações de bens de primeira necessidade cresceriam de forma acelerada a partir de 1915. O aumento das exportações dos gêneros de primeira necessidade deslocou uma parcela ponderável da produção tradicional que era voltada para o mercado interno, e passou a atender as demandas externas. O preço dos produtos acabou encarecendo para o consumo interno – dos brasileiros. A esta ascensão dos preços correspondiam salários nominais estanques e a política oficial de “apertar os cintos”, a freqüente instituição de contribuições “pró-pátria” descontados em folha e outras formas de socializar a crise. Portanto, a elevação do custo de vida fez-se acompanhar do declínio constante do salário real.

Abaixo está reproduzido um quadro que procura demonstrar quantitativamente a industrialização e o número de operários no Brasil, três anos após a Greve de 1917. No levantamento de informações, é a representação mais próxima que podemos ter da realidade daquele ano.

Estatística Industrial – 1920.
Estado Número de estabelecimentos Número de Operários
Distrito Federal 1.451 56.229
Minas Gerais 1.243 18.552
Rio de Janeiro 454 16.794
Rio Grande do Sul 1.773 24.661
São Paulo 4.145 83.998
Demais Estados 4.180 75.278
Total 13.336 275.512

Observamos que o Rio grande do Sul em 1920 ocupava o segundo lugar em relação aos outros estados no tocante ao número de indústrias e o terceiro em relação ao número de operários.

No Rio Grande do Sul, durante a Primeira Guerra Mundial, instaura-se um processo de substituição de exportações, concentrando no setor de bens de consumo não-duráveis: têxteis, calçados, bebidas, produtos alimentares, etc. Ou seja, a elevação dos preços dos gêneros de primeira necessidade se deu graças à produção voltada para o mercado externo. Os principais compradores dos nossos produtos eram os países em Guerra. Produzíamos para alimentar as potências em guerra e o nosso povo passava fome. A expansão industrial dá-se à custa da intensificação da força de trabalho: a jornada de trabalho situava-se entre 10 e 12 horas diárias nas fábricas, oficinas e construção civil: no comércio têm-se notícia de jornadas diárias ainda mais prolongadas. Também era alta a percentagem de mulheres e crianças empregadas em fábricas. O trabalho feminino e infantil percebia uma remuneração ainda mais baixa do que o trabalho operário masculino adulto.

Estatística Industrial do Rio Grande do Sul (1905 – 1919)
Ano Número de Fábricas Capital (contos de réis) Produção (contos de réis) Operários Força Motriz
1905 314 49.200 99.780
1908 314 14.434 99.778 15.426
1915 2.787 101.586 220.551 29.617 25.969
1916 9.477 119.801 265.963 38.488 30.930
1917 11.787 142.792 371.707 52.444 37.583
1918 12.770 155.556 399.718 58.680 43.230
1919 12.950 160.000 420.000 65.000 43.600

Demonstra-se através do quadro acima, que houve um elevado crescimento econômico (em todos os sentidos: número de indústrias e operários inclusive) no ano de 1917, em relação à tendência de crescimento ano a ano verificada no período.

Fica claro que a crise era para as classes mais baixas, os trabalhadores e operários em geral. Alguém estava lucrando com a conjuntura de Guerra e crise “econômica e social”: a burguesia industrial.

Sobre Porto Alegre o quadro que segue é bem interessante, podemos ver que nos anos próximos 1917 o número de oficinas, era bem maior do que o número de indústrias. Mostra assim outro perfil do período. Demonstra que a classe operária não era formada por “proletários” industriais de linhas de produção, mas com mestre de ofícios, artesãos, aprendizes de artesãos, etc.

Anos Número de Fábricas Número de oficinas
1908 100 18
1907 126 24
1908 112 38
1909 117 33
1910 129 37
1911 154 149
1912 180 172
1913 180 172

O censo de 1920 registrou em Porto Alegre um total de 179.263 habitantes, porém a população economicamente ativa era de 53.178 pessoas. Este número subestima demais a realidade, pois muitos trabalhadores que participavam da economia urbana não apareceram nos registros oficiais. A economia informal, que naquela época era representativa, está fora dos registros estatísticos. Destes trabalhadores aferidos, 74,7 % eram nacionais e 25, 3 % eram estrangeiros.

Destaca-se no quadro acima, a representação gráfica do proporcional de habitantes em Porto Alegre e os trabalhadores economicamente ativos. Outro destaque é possível fazer quanto à questão do papel do imigrante no movimento operário do período. Percebemos a mínima quantidade da representação imigrante – cerca de um quarto do total de trabalhadores, e os trabalhadores de nacionalidade brasileira representavam três quartos do proletariado. Na greve de 1917, a maioria dos militantes operários, como já dissemos, conviveu e foi “formada” nas ações políticas e culturais do próprio movimento operário. Eram em sua maioria militantes nascidos no Brasil, e gaúchos. Podemos considerar também, que embora não tenhamos dados sobre o total da população do Estado e o número de operários, pode-se ter uma idéia a partir do momento que Porto Alegre era, junto com Rio Grande e Pelotas, as cidades com um maior número de oficinas e indústrias.

Distribuição setorial do pessoal economicamente ativo (1919) Número de pessoas Proporção
Indústria 16.880 31,7%
Transporte 4.189 7,9%
Comércio 12.458 23,4%
Agricultura 9.390 17,7%
Exploração do subsolo 171 0,3%
Administração/prof. liberais 10.090 19,0%
Total população economicamente ativa com profissão definida
53.176
100,00%

Luta e organização: As organizações operárias no rio Grande do Sul começam a surgir nas últimas décadas do século XIX. Destacamos um ponto importante neste aspecto que é a constituição de organizações operárias esparramadas por todo interior do Estado. Pode-se ver no primeiro congresso operário, no ano de 1898 a participação de várias cidades como: Porto Alegre, Rio Grande, Pelotas, Alegrete, Cruz Alta, entre outras. Assim destacamos que existiam organizações operárias em Alegrete, Uruguaiana, Quarai, Livramento, Dom Pedrito, Bagé, São Francisco de Assis, São Gabriel, Santa Maria, Passo Fundo, Cachoeira do Sul, etc.

A redução no nível e condições de vida, o agravamento nas condições de existência do operariado durante a Primeira Guerra atingiu seu clímax no ano de 1917. O descontentamento se generaliza no meio operário e seus efeitos começam por São Paulo. A partir do mês de junho eclodem várias greves que se alastram e ampliam no mês de julho. Atingiram seu ponto alto entre os dias 12 e 15 de julho, quando se forma um Comitê de Defesa Proletária que negocia aumentos salariais.

As notícias da “Greve Geral” chegam pela imprensa, noticiando a paralisação dos operários de São Paulo, Distrito Federal, Rio de Janeiro, Curitiba, etc. No Rio Grande do Sul a greve de 1917, de acordo com Silvia Petersen, em termos organizativos foi obra da Liga de Defesa Popular, pois a FORGS, pouco ou nada fez para mobilizar os trabalhadores. A greve foi fruto da insistência de grupos de operários, militantes que tomaram para si a responsabilidade de organizar os trabalhadores. A pesquisadora Silvia Petersen aponta que em nota publicada na imprensa, a FORGS declara que: “(…) não cogita de greve, tendo até mesmo se esforçado junto às associações que lhe são federadas para que esta capital nada venha sofrer na sua tranqüilidade.” Sobre este aspecto relacionado à participação da FORGS, também colabora Adhemar Lourenço da Silva Jr . Destacando que: “Há indícios de que os cargos da diretoria da Federação Operária não eram então ocupados por anarquistas e que tais militantes eram inclusive contrários a uma greve geral.” Estes “tais militantes” a que se refere Adhemar, só para ficar bem claro, eram os não anarquistas. Existia no entanto a União Operária Internacional, organização anarquista que se empenhava pela greve. No dia 26 de julho começa a ocorrer alguns incidentes. Operários da viação Férrea percorrem a linha propagando a greve. No dia 30 de julho era feita uma convocação assinada pela União Operária Internacional marcando uma concentração pública para o outro dia na Praça da alfândega. No final desta concentração ao clamor e gritos de Greve! Greve! – foi eleita uma “Liga de Defesa Popular”. Os principais organizadores da greve em Porto Alegre, eram membros da Liga: Luis Derivi, secretário do sindicato dos pedreiros, carpinteiros e classes anexas e o líder tipógrafo Cecílio Vilar, o qual entre outras coisas afirma:

“…mas o momento não é para conciliações, é de luta. A luta mais justificável, a luta pela vida. Os operários devem se erguer como um só homem, para sair às ruas e conquistar o pão que nos está sendo roubado e a fim de protestar contra a exploração de que é vítima a classe trabalhadora (…)

À noite a Liga reuniu-se e divulgou uma nota, com uma a seguinte pauta:

  1. Diminuição dos preços dos gêneros de primeira necessidade em geral;
  2. Providências para evitar o açambarcamento do açúcar;
  3. Estabelecimento de um matadouro municipal para fornecer carne à população a preço razoável;
  4. Criação de mercados livres nos bairros operários;
  5. Obrigatoriedade da venda do pão a peso e fixação semanal do preço do quilo;
  6. A intendência deve cobrar pelo fornecimento da água 10 % sobre os aluguéis e reduzir para 5% as décimas dos prédios cujo valor seja inferior a 40$000.
  7. Compelir a companhia Força e Luz a estabelecer passagens de 10 réis de acordo com o contrato feito com a municipalidade;
  8. Aumento de 255 sobre os salários atuais;
  9. Generalização da jornada de 8 horas;
  10. Estabelecimento a jornada de 6 horas para as mulheres e crianças.”

No dia 1º de agosto uma comissão é recebida por Borges de Medeiros que iria estudar as reivindicações operárias. Naquele inicio de agosto, Porto Alegre viveu momentos de empolgação revolucionária, pois a Liga de Defesa Popular constitui-se num verdadeiro poder paralelo, expressão de um “poder popular”. A força da Liga de Defesa Popular é bem ilustrada nos casos dos Salvo-condutos. Instituições, repartições púbicas, empresários além é claro, dos operários que recorriam à Liga de Defesa Popular para tratarem de assuntos de gestão da cidade e de algumas empresas que procuravam permissão da Liga. Nenhum veículo pôde circular sem salvo conduto.

Houve confrontos entre os operários e a brigada militar, como é possível afirmar a partir da pesquisa de João Batista Marçal , na biografia de “Djalma Fettermann, a bomba que assustou os brigadianos”:

Djalma Fettermann teve uma atuação importantíssima na Greve geral de 1917 e nos movimentos que precederam e sucederam, principalmente nas ações de rua, contra a policia e os fura-greves. Adepto da ação direta, juntamente com Reinaldo Geyer e Zenon de Almeida, aperfeiçoou um dispositivo de detonação de bombas que aterrorizou a brigada militar.

Além desta referência a enfrentamentos com a policia, o livro sita vários outros exemplos referentes a estes fatos da greve de 1917 em Porto Alegre.

“Concentração de grevistas na Rua da Praia por ocasião da greve de julho de1917”, este é o comentário abaixo da foto. A pesquisadora Sandra J. Pesavento , acrescenta: “Piquetes de operários cruzavam as ruas com praças da policia administrativa e da Brigada Militar, que patrulhavam a cidade.” Segue ela: “as ruas onde se situava o alto comércio da capital, onde nos dias normais era intenso o movimento, se encontravam paralisadas (Correio do Povo, 03/08/1917).”

No dia dois Borges de Medeiros baixa dois decretos atendendo boa parte das reivindicações feitas pela Liga de Defesa Popular: O Decreto 2.287 estipula aumentos salariais para todos “proletários ao serviço do Estado”, enquanto o decreto 2.288 regula a exportação de produtos alimentícios do estado. Segundo Miguel Bodea “Um veículo, portando, uma bandeira branca com as iniciais da Liga, L.D.P., estampadas em vermelho, percorria as ruas da cidade. A Liga concitava os operários a não voltarem ao trabalho, apesar das concessões já obtidas pelo governo estadual.” Na noite do dia 3 de agosto, o chefe de polícia Firmino Paim Filho comunica à Liga que as reivindicações dos operários serão atendidas. No dia 4 de agosto o Intendente municipal José Montaury Leitão baixa o Ato 137, estabelecendo o tabelamento de preços de gêneros de primeira necessidade com preços reduzidos ou tabelados: arroz, banha, açúcar, cebola, erva-mate, ovos, leite, pão, salame, manteiga, sal, charque, querosene, vela de sebo, massa branca, milho, fósforo, polvilhos, etc. Também é reeditado o Ato 107, de 1914, que regula as normas de venda de carne verde. Cedendo à pressão do movimento operário quase todas as firmas concedem aumentos de 25% e jornadas de trabalho de 8 horas. Alguns dos acordos seriam depois descumpridos. No dia 05 de agosto a Liga de Defesa Popular resolve encerrar a greve (em Porto Alegre). Porém permaneceram em greve os operários cujos patrões não tinham concedido a diminuição da jornada de trabalho e o aumento salarial. No boletim de 05 de agosto da Liga de Defesa popular lemos: “…examinando as conquistas feitas pelo proletariado local no atual movimento e o alcance das medidas tomadas pelos poderes públicos … cessa o motivo da greve geral e a Liga de Defesa Popular aconselha a volta ao trabalho a todas as classes que julgarem conveniente. Aos que quiserem prosseguir em greve, por não terem conseguido seu objetivo, a Liga e a Federação Operária hipotecam sua solidariedade…”

Para listar as categorias e cidades em que trabalhadores gaúchos aderiram as greves de 1917 utiliza-se o levantamento feito por Silvia Petersen “Relação das Greves no Rio Grande do Sul” :
Ano/duração: 1917 – 30 de julho/ 9 de agosto.
Local: Santa Maria, Bagé, Livramento, Carazinho, Porto Alegre, Gravataí, Cruz Alta, Julio de Castilhos, Passo Fundo, Caxias, Pelotas, Santa Cruz, Rio Grande, São Leopoldo, Montenegro, Caí, Cachoeira, Cacequi, São Gabriel, São Jerônimo, D. Pedrito.
Categorias: Operários da Viação Férrea.
Motivos: Aumento Salarial, jornada de 8 horas, Semana Inglesa.
Observações: Dela participaram todos os municípios servidos pela Viação Férrea.

Ano/duração: 1917 – 01 a 05 de agosto.
Local: Porto Alegre
Categorias: Condutores de veículos e motores, empregados da Cia. Força e Luz, tipógrafos, estivadores, chapeleiros, operários do estaleiro Mabilde, empregados da Cia Telefônica, empregados moinho Rio-grandense, empregados das casas de Domingos Felippeto e Caetano Fulginatti, operários da fabricação de tamancos, empregados da destilaria Scalzilli, empregados da fabrica Castor, empresa de carruagens, União de ferros, Casa Singer, Victor Fischel, alfaiates, Gerdau, Cia Fabril Porto Alegrense, carpinteiros e marceneiros, Usina elétrica municipal e Cia Fiat Lux.
Motivos: Custo de vida e aumento Salarial
Observações: Vitória Parcial

Ano/duração: 1917 – agosto?
Local: Montenegro
Categorias: Operários da Fábrica de banha de J. A. Renner.
Motivos: Aumento de salário: jornada de 8 horas, solidariedade com companheiros de Porto Alegre.
Observações: Conseguem aumento salarial.

Ano/mês/duração: 1917 – 8 a 20 de agosto.
Local: Pelotas
Categorias: Motorneiros e condutores de bondes elétricos.
Motivos: Aumento Salarial, diminuição da jornada.
Observações: Greve Geral coordenada pela Comissão de Defesa Popular.

Ano/duração: 1917 – 8 agosto.
Local: Caxias
Categorias: Empregados de Amadeu Rossi.
Motivos: Aumento salarial, diminuição da jornada.
Observações:

Ano/duração: 1917 – agosto.
Local: Jaguarão
Categorias: Estivadores
Motivos: Aumento Salarial
Observações: Vitória

Os ferroviários haviam se adiantado ao movimento e no dia 31 de julho pela tarde começa a greve nas estações de Porto Alegre, Santa Maria, Pelotas, Rio Grande, Bagé, Gravataí, Passo Fundo, Couto, Cacequi e Rio Pardo.O inspetor geral da VFRGS Mr. Cartwrigth, começa a despedir funcionários e solicita a intervenção das tropas da 7ª Região militar. No dia 2 de agosto é feita a ocupação da estação de Santa Maria. Em represália os operários arrancam trilhos, derrubam pontes e bloqueiam a via com os dormentes e postes telegráficos em vários pontos do estado. Em Passo Fundo ocorrem violentos choques entre ferroviários e as forças militares. No dia 5 termina a greve dos ferroviários devido a forte intervenção militar. O movimento retorna em 1918.

Em alguns núcleos urbanos do interior ocorreram conflitos bem mais sérios dos que ocorreram na Capital. Em Pelotas, segundo maior núcleo urbano do Rio Grande do Sul (60 mil habitantes na época) o poder público resolveu o enfrentamento aberto ao movimento operário. A greve começa em 04 de agosto com várias categorias entrando em greve, e em atitude semelhante à de Porto Alegre e São Paulo criaram o Comitê de Defesa Popular. No dia 10 de agosto o movimento se radicaliza:

Uma passeata realizada no centro da cidade culmina com um comício na Praça 7 de julho. Durante o comício ocorre a violenta intervenção da policia, provocando tiroteios entre policiais e grevistas. A seguir intervém o 11º regimento de cavalaria: o conflito degenera em verdadeira batalha campal, que terá como resultado vários feridos.

Os operários se concentram na sede da Liga operária e novamente a polícia se envolve. Os operários resistem à ação da polícia que busca prendê-los e fechar a sede operária. O chefe de polícia tem seu cavalo abatido a tiros pelos operários e um funcionário da intendência municipal é mortalmente ferido. Depois de muita resistência os operários são finalmente desalojados da sede da liga operária. Ocorre uma radicalização cada vez maior das lutas e os operários de orientação anarquista, em boletins proclama: “companheiros! Não vos qualifiqueis: companheiros se já tendes título rasgai-o a fim de não dar a esses régulos o vosso voto. (…)”

O chefe de polícia da capital é deslocado para Pelotas em 12 de agosto para mediar a situação. No dia 15 de agosto a greve termina com a baixa dos preços dos gêneros de primeira necessidade.Também houve greves importantes em Rio Grande, Passo Fundo, Santa Cruz, Montenegro e Bagé.

A origem dos vários direitos que os trabalhadores possuem hoje, foram conquistados na luta, no enfrentamento contra os patrões e o governo. Quanto à greve de 1917: destacamos a conquista por algumas categorias das 8 horas de trabalho diárias e para Porto Alegre ficou o começo das “Feiras Livres” que existem até hoje.

Depois das mobilizações de 1917 o governo de Borges de Medeiros desencadeou uma série de ações de repressão, perseguição, prisões, deportações e morte de militantes operários anarquistas em porto Alegre e no Rio Grande do Sul. Conseguiu assim diminuir a influencia destes militantes e dessa ideologia de luta no seio do movimento operário, além de outros fatores conjunturais das décadas seguintes. Em relação às mobilizações de Julho/agosto de 1917, percebemos:
– Que a classe operária representava um número relativamente pequeno em relação ao restante da população, principalmente em relação ao interior do estado (além de visualizarmos as limitações operárias em um Estado eminentemente agro-pecuário, percebemos a força do proletariado em vergar o governo e os patrões );
-Que esta classe operária não era composta em sua maioria de operários industriais, mas sim de pequenos artesões e mestre de ofícios – de oficinas, inclusive no interior do Rio Grande do Sul (a formação da classe operária, como já demonstrou E. P. Thompson, não é um derivado automático das estruturas econômicas, nem fruto da grande indústria moderna);
– Que a pauta de reivindicações contemplava questões que abarcavam as demandas daqueles setores que não apareciam na economia formal, ou seja, as demandas da população excluída do mercado de trabalho: moradia, transporte, preço dos gêneros alimentícios, etc. (traz naquela época, a preocupação da articulação das lutas dos oprimidos, como vivenciamos atualmente, porém não tiveram possibilidades de articular a luta camponesa e os trabalhadores rurais /Contestado/ – De acordo com o pesquisador Jorge Telles de Rosário do Sul, algumas tentativas foram feitas com Honório Lemes em 1923 mas não surgiram efeito);
– Que a mobilização grevista foi fruto de um processo acumulativo da cultura política operária, seus métodos de luta eram alicerçados na orientação anarquista;
– Papel fundamental dos organismos de gestão populares criados tanto em São Paulo, quanto em Porto Alegre e Pelotas (cabe aprofundar estudos sobre estas iniciativas e tecer paralelos com propostas de Poder Popular);
– Deixa claro a necessidade de um instrumento político anarquista que implementasse a partir de uma estratégia revolucionaria, táticas de luta na condução, na articulação e unificação das lutas – assim como preparar-se para a conjuntura de perseguições aos militantes operários que viriam a seguir.

Notas Bibliográficas:
* Este trabalho é uma introdução ao tema – GREVE GERAL DE 1917 – a partir de uma revisão bibliográfica.
Graduado em História, URCAMP/Alegrete – 2000. Especialista em Gestão Educacional – URCAMP/Alegrete -2002. Mestrando PPG – História PUCRS/POA – 2007. E-mail: arpcorrea@bol.com.br
2 BODEA, Miguel. A Greve de 1917: As origens do trabalhismo gaúcho.L&PM, POA, s/d;p.21. Tem quadro com números. Ver outras fontes.
3 REICHEL, Heloisa J. A Industriali2zação no Rio Grande do Sul na República Velha. In: RS; Economia e política; por Guilhermino César e outros. Org. Hildebrando Dacanal e Sergius Gonzaga. S ed. Porto Alegre. Mercado Aberto, 1993.p.267.
4REICHEL, Heloisa J. A Industriali2zação no Rio Grande do Sul na República Velha. In: RS; Economia e política; por Guilhermino César e outros. Org. Hildebrando Dacanal e Sergius Gonzaga. S ed. Porto Alegre. Mercado Aberto, 1993.p.17.
5 BODEA, Miguel. A Greve de 1917: As origens do trabalhismo gaúcho.L&PM, POA, s/d;p.25.
6 PETERSEN, Silvia Regina Ferraz. “Que a União Operária Seja Nossa Pátria!”: hitória das lutas dos operários gaúchos para construir suas organizações. Santa Maria: editoraufsm; Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001. p329.
7 SILVA Jr. Adhemar Lourenço. A bipolaridade política rio-grandense e o movimento operário (188? – 1925). Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v.XXII, n.2, dez.1996, p.19. Faz-se necessário incluir, mesmo que em “nota”, os importantes estudos do Professor Adhemar Lourenço Silva Jr. Professor Adhemar possui várias pesquisas sobre a classe operária gaúcha, com destaque para os acontecimentos de1917. É indispensável o estudo de seu trabalho inclusive para percebemos as contradições que ocorriam no próprio movimento e no fazer-se da classe operária e “movimento anarquista”.
8 BODEA, Miguel. A Greve de 1917: As origens do trabalhismo gaúcho.L&PM, POA, s/d;p.31.
9BODEA, Miguel. A Greve de 1917: As origens do trabalhismo gaúcho.L&PM, POA, s/d;p.32.
10 MARÇAL, João Batista. Os anarquistas no Rio Grande do Sul: anotações biográficas, textos e fotos de velhos militantes da classe operária gaúcha. Porto Alegre, EU/ Porto Alegre, 1995.p.76.
11 PESAVENTO, Sandra Jatahy. O espetáculo da Rua. 2 ed. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1996. p.82.
12 Ibidem, p.41.
13MARÇAL, João Batista. Os anarquistas no Rio Grande do Sul: anotações biográficas, textos e fotos de velhos militantes da classe operária gaúcha. Porto Alegre, EU/ Porto Alegre, 1995.p.46.
14 PETERSEN, Sílvia R. Ferraz. As Greves no Rio Grande do Sul. In: RS; Economia e política; por Guilhermino César e outros. Org. Hildebrando Dacanal e Sergius Gonzaga. S ed. Porto Alegre. Mercado Aberto, 1993.p.290.
15 BODEA, Miguel. A Greve de 1917: As origens do trabalhismo gaúcho.L&PM, POA, s/d;p.47.
16 BODEA, Miguel. A Greve de 1917: As origens do trabalhismo gaúcho.L&PM, POA, s/d;p.48.

Bibliografia consultada:
BODEA, Miguel. A Greve de 1917: As origens do trabalhismo gaúcho.L&PM, POA, s/d.
MARÇAL, João Batista. Os anarquistas no Rio Grande do Sul: anotações biográficas, textos e fotos de velhos militantes da classe operária gaúcha. Porto Alegre, EU/ Porto Alegre, 1995.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O espetáculo da Rua. 2 ed. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1996
PETERSEN, Sílvia R. Ferraz. As Greves no Rio Grande do Sul. In: RS; Economia e política; por Guilhermino César e outros. Org. Hildebrando Dacanal e Sergius Gonzaga. S ed. Porto Alegre. Mercado Aberto, 1993.
PETERSEN, Silvia Regina Ferraz. “Que a União Operária Seja Nossa Pátria!”: hitória das lutas dos operários gaúchos para construir suas organizações. Santa Maria: editoraufsm; Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001.
REICHEL, Heloisa J. A Industriali2zação no Rio Grande do Sul na República Velha. In: RS; Economia e política; por Guilhermino César e outros. Org. Hildebrando Dacanal e Sergius Gonzaga. S ed. Porto Alegre. Mercado Aberto, 1993.
SILVA Jr. Adhemar Lourenço. A bipolaridade política rio-grandense e o movimento operário (188? – 1925). Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v.XXII, n.2, dez.1996.

Fonte: www.anarkismo.net